Crônica do desastre anunciado

Roma não se fez num dia. Tampouco as decisões de Trump quanto ao Oriente Médio. Datam de bem antes da posse, abençoada com o séquito esplendoroso da Família Real saudita. Na sequência, a visita de Trump a Ryad, a primeira que fez ao exterior, já presidente, para acertos finais: os sauditas financiariam uma presença militar americana jamais vista no país e apoiariam o rompimento das negociações entre Israel e Palestina.

O jogo muda radicalmente. Preço? Compras de armas americanas pelos sauditas (US$ 110 bilhões) de imediato, mais US$ 350 bilhões em dez anos. Centenas de bilhões de dólares em investimentos sauditas nos Estados Unidos, e “empregos, empregos, empregos”, segundo um eufórico Trump. Apregoa tratar-se de quebrar o financiamento ao terrorismo e avançar na cooperação defensiva.

Depois de Ryad, Israel e Belém. Em execução a solução Trump: cortar o mal pela raiz. A bandeira norte-americana já tremula em Jerusalém e o conflito recrudesce em Gaza.

O jogo continua; os Estados Unidos abandonam o acordo nuclear com o Irã. Para quem se afirma o arquiteto da paz no Oriente Médio, Trump não tem lá muito crédito entre os cientistas políticos e analistas. “Washington relança a escalada nuclear”, alardeia Michael Klare (Diplo, março 2018).

O Nuclear Posture Review, relatório do Pentágono, publicado em 2 de fevereiro, expõe uma estratégia nuclear de modernização do arsenal em vias de expirar, sob o argumento de ameaça  russa e do papel crescente da política nuclear chinesa. Neste ano, os gastos militares sofrerão aumento de US$ 80 bilhões. Em 2016, o total chegou a US$ 611 bilhões. Em vista, a tríade: mísseis balísticos intercontinentais, mísseis balísticos mar-solo, bombas e mísseis de cruzeiro, de lançamento aéreo.

Flexível, sob medida, o arsenal cresce em munições nucleares de fraca potência, “utilizáveis”. Aumentam a margem de manobra do presidente e lhe permitem passar à ação, se preciso. O oposto do relatório Obama, em abril de 2010, fundamentado em reduzir a importância das armas nucleares na doutrina militar do país. E incentivo à China e Rússia, para também estufarem seus arsenais.

O inimigo de meu inimigo é meu amigo. No Oriente Médio, o Irã é o bandido. Segundo Michael Wolff (Fire and Fury), o pensamento de Trump se resume ao seguinte: lá há quatro atores – Israel, Egito, Arábia Saudita e Irã. Os três primeiros podem unir-se contra o quarto. E Egito e Arábia Saudita, desde que recebam o que esperam em troca, pressionarão os palestinos a um acordo.

Assim, em vez de uma postura equilibrada, face a um complexo multilateral de ameaças, interesses, acordos, relações, a nova política externa reduz o tabuleiro a três elementos: potências com as quais pode lidar, potências com as quais não pode, e países sem poder suficiente e que, portanto, podem ser desdenhados ou sacrificados.

Eminência parda, o agora assessor de segurança nacional, John Bolton, traz uma constante em sua carreira diplomática na Casa Branca: agressão. Ironicamente, Foreign Policy o chama “ameaça à segurança nacional”. Considerado o artífice da política antiacordos (clima, nuclear), Bolton é especialista em resolver crises com a guerra. Bombas onde julga necessário: Iraque, Líbia, Síria, Coreia do Norte. Agora, são o Irã e Hassan Rouhani que os Estados Unidos querem dobrar, a começar pelas sanções econômicas. Como reagirão? E como reagirá a Europa?

Para os europeus, a quebra do acordo é uma ofensa a seu orgulho e à influência da diplomacia europeia, com efeitos na política de segurança e relações com os Estados Unidos. Céticos, questionam se a Europa encara “esta crise” como um chamado, um despertar, para uma nova política externa comum. Ou continua a suportar as humilhações impostas pela Casa Branca.

Há três preocupações concretas à tona: consequências à segurança do Oriente Médio e Europa; risco para as empresas europeias que investiram no Irã; futuro das relações com os Estados Unidos.

O diplomata alemão Wolfgang Ischinger (Der Spiegel) critica a conduta recente da Europa, dizendo que deveria estar melhor preparada para “este choque de Trump”.

“Para deter a bomba iraniana, basta bombardear o Irã”. Ainda Bolton. Segundo a imprensa alemã, ele costuma aparecer em reuniões do Mujahedin Popular, grupo radical formado nos anos 1960 contra o xá e que, hoje, faz lobby em prol da guerra contra o Irã. Ano passado, num desses “encontros” previu: “Aqui mesmo, celebraremos Teerã, em 2019”.

E o Irã? O conflito doméstico entre moderados e os linha-dura persiste. Embora o presidente Rouhani penda para a “aliança” com os europeus, Rússia e China, o líder supremo, religioso, Ali Khamenei, é o eterno desconfiado dos ocidentais. Já na política externa, o país reinventa-se como potência regional.

Desde a assinatura do agora finado acordo nuclear, em 14 de julho de 2015, amplia o leque de influência, para estabelecer o domínio xiita. Apoia as milícias no Iêmen – a guerra das mil e uma noites -, bem como o Hezbolá, no Líbano, e o Hamas, na faixa de Gaza. Fora a Síria, que lhe importa pela localização geográfica. Quanto à Arábia Saudita e Israel, os dois únicos inimigos regionais, queixam-se de ameaças da Guarda Revolucionária, embora esta, independente do governo, reporte diretamente a Khamenei.

“A chave da especificidade do Oriente Médio não é o Islã, mas o petróleo”, diz o autor Gilbert Achcar. Enquanto a Arábia Saudita é sinônimo de Península Arábica, o planalto iraniano é sinônimo de um único país, de localização privilegiada, com a terceira maior reserva de petróleo do mundo e a segunda em gás natural. É também o único país que tem um pé em cada uma das áreas produtoras do Mar Cáspio ao Golfo Pérsico – onde se concentram 55% das reservas mundiais de petróleo cru, segundo estimativas, e totalmente sob domínio iraniano. Abarca, assim, os ricos campos petrolíferos de ambos, e ainda alcança o Oriente Médio propriamente dito e a Ásia Central.

Do ponto de vista político, influencia no Mediterrâneo: Gaza, sul do Líbano, Síria. O Irã gratifica-se com sua localização, população e recursos energéticos; fundamental, portanto, para a geopolítica global.

O historiador britânico Michael Axworthy lembra, ainda, que o Irã é um fator de “atração civilizacional”,  atraindo outros povos e línguas, “a essência do poder brando”.

“O Irã, como seu programa nuclear pode comprovar, figura entre os países mais avançados tecnologicamente do Oriente Médio, em consonância com sua cultura e política”, acrescenta o historiador Robert Kaplan. E mais: erigiu um poderio militar pós-moderno, de estratégia baseada na guerra por procuração (proxy war), armas assimétricas e apelo aos oprimidos, louva Robert Baer, ex-CIA. Por ora, há que conviver com o que Der Spiegel considera a mais perigosa e brusca decisão de política externa que um presidente americano toma, desde a invasão ao Iraque, em 2003.