Um problema atual

Um problema atual
Nada há mais desastroso para a alma do que o abandono dos ideais. Modesto que seja, o ideal é a esperança cultivada com carinho e traz sempre uma auréola de confiança e sacrifício. Se pelo enfraquecimento da vontade, toldam-se estes fatores decisivos, o que dantes era pensamento concreto toma contornos imprecisos e tudo se transforma em miragem inatingível.
Considerando a suma importância dessa força que constitui, às vezes, a única razão de toda uma vida, a ela se sucedem, invariavelmente, a depressão, a angústia inexprimível; invade o espírito uma sensação de inutilidade tal, que se manifesta no olhar, nos mínimos gestos do indivíduo. Não raro essa luz volta a brilhar com a mesma intensidade, por uma condição exclusiva da vontade.
Quando falamos em ideal, temos em mente algo construtivo e grandioso que não se pode confundir com meros caprichos da fantasia. Carece de fundamento sólido se não tem um sim altruísta, perde o devido mérito se a criatura não consegue colocar a humanidade acima do próprio interesse.
É tudo o que há de mais belo e nos faz amar a vida, a natureza, o Universo enfim, vibrando em uníssono com ele. Mas pelas contingências mesmas desta vida, muita coisa se interpõe ostensivamente e como que embarga essa caminhada; circunstâncias inteiramente alheias à vontade, que, se algumas vezes nos retemperam o ânimo, casos há em que destroem o ânimo e a vida.
Nenhum exemplo disto é mais tocante que o do estudante tuberculoso.
Eu o vi e admirei-lhe os pensamentos iluminados: tinha febre e o precioso cérebro ardia. Excesso de estudo, pelo desvario insaciável do saber, que é também uma febre; excesso de trabalho pela necessidade de manter o corpo.
E como matar a doença? Apesar de francamente curável, só os ricos, até agora, possuem esse direito. Os sanatórios de indigentes são, com raríssimas exceções, estágios de “espera” para a viagem definitiva. E o rapaz dizia risonho e com o bom humor espirituoso que o caracterizava:
– Não adianta. Podem ir começando a rezar pela minha alma.
Fez-se uma coleta. Todo o colégio se movimentou para ajudar o jovem que tanto prometia. Anunciaram-se peças teatrais, concertos e recitais. Cada um dava de si o que podia; e com tanta alma, tanta consciência da grandeza do que fazia, que o público em massa acorreu, dando a sua contribuição valiosíssima.
E foi o rapazinho para Campos de Jordão; na belíssima saudação de despedida notava-se muito desprendimento, mas também era emocionante a sua certeza de voltar em breve. Não voltou. O dinheiro não bastara porque a doença já lhe havia minado o corpo, irremediavelmente. E como esse, os casos se sucedem.
Aos homens que governam e tanto se preocupam com o progresso do País (nas vésperas das eleições, principalmente) parece que falta o verdadeiro senso do que seja esse progresso, pois esquecem, com um pouco caso irritante, o problema do estudante pobre.
Já existe alguma facilidade para o universitário; ensino gratuito (na Universidade do Brasil) e refeições baratas. Mas não se pode chegar à faculdade sem passar pelo Ginasial e o Colegial, cursos que ainda são, entre nós, privilégio dos ricos, tais os preços exorbitantes dos estabelecimentos particulares. E são sete longos anos.
O estudante têm que trabalhar duro, e curvado ao peso do duplo esforço transforma-se, não raro, num pseudo-estudante: recorre à “cola” na ocasião suprema da prova. E muitos chegam assim às faculdades, aos trambolhões e apenas com a vontade de estudar, mas sem ter tempo de fazê-lo. O ideal é a única força que os mantém. Nenhum outro estímulo; ninguém reconhece neles a força viva da nação.
E são felizes quando não ficam no caminho. Parece que todos os nossos legisladores nasceram em berço de ouro e desconhecem inteiramente o epílogo do drama. Incompreensão gera revolta, e revolta é sinônimo de anarquia.
Se querem construir uma democracia à altura deste nome, que façam do adolescente um futuro colaborador inteligente e não desprezem o ideal que se amalgama sem lograr afirmar-se; pois se verifica, sem exagero, que todo estudante pobre é um revolucionário. Alegam o estômago vazio, o abandono dos ideais. Tornam-se perigosos.
Juventude é força, é esperança, o futuro. Cícero considera o jovem que morre como uma chama viva mergulhada n’água. Urge conservar brilhantes os lampejos dessa chama; pelo Brasil e pela humanidade.
Maria Luiza de Medeiros Britto
Publicado em 8 de dezembro de 1953