Vem lá de longe o choque ambiental face à fúria do desenvolvimento apenas lucrativo. Talvez o marco mais conhecido seja mesmo o século XIX, testemunha das primeiras manifestações de lucidez sobre o clima. Em 1896, o cientista sueco Svante Arrhenius lançou o alerta do aquecimento, logo endossado pelo geólogo americano Thomas Chamberlain, estudioso da origem da Terra. Avisos negligenciados praticamente até 1988, quando criado o Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática com o grito: que as sociedades respondam à mudança do clima, reduzindo as emissões de gás do efeito estufa – mitigação – e se adaptem a seus efeitos, amenizando-os com medidas adequadas – adaptação.
Entrando no século XXI, o ICPP aprofunda as avaliações, explorando a interdependência de clima, ecossistemas, biodiversidade e ciências humanas. Pela primeira vez, divulga-se um estudo de 200 cientistas sobre o estado dos ecossistemas [theamazonwewant.org]. Dois deles, Carlos A. Nobre e Ismael Nobre, defendiam, desde 2016, uma terceira via para a Amazônia. Não à simples conservação de áreas extensas e agro/mineração, sim em favor da bioeconomia, que aproveita a biodiversidade local. Mais perto no tempo e espaço, em audiência pública, agosto 2023, Marina Silva, ministra do Meio Ambiente do Brasil, deu seu segundo alerta em poucos anos: o Brasil tem o desafio e a oportunidade de integrar, na mesma equação, a preservação ambiental e o desenvolvimento econômico. Porque o Brasil é potência ambiental, agrícola, hídrica.
As ciências do clima só aparecem em 1979, nos Estados Unidos. A opinião pública, embora tardiamente, passa a aceitar, como óbvia e imutável, a constatação de que reduzir o nível de aquecimento da Terra é preciso. A grande batalha do 1,5 grau C, ou mesmo 2 graus C, fora perdida no emaranhado de políticas públicas menos públicas do que políticas. Perderam feio. O uso abusivo de combustíveis fósseis (ah, as guerras eternas, a exploração do solo!) encontrou um aliado poderoso na velha retórica: desde que o mundo se conhece como tal, cresce lucrando ou lucra para crescer. Inconsequente. O crime climático, tornado a terceira economia ilícita mais lucrativa, entrou na cadeia. Hoje, abastece a crise, com aquecimento em todas as frentes para além da ambiental: violência, tráfico (drogas, gente, armas), lavagem de dinheiro, suborno, intrusão na política, direta ou indiretamente.
Causa de muitos. Essa luta agora pretende unir, em causa comum, os países de matas sob assédio: a Bacia Amazônica, Indonésia, República Popular do Congo, República do Congo, St. Vincent e Granadinos.
Um novo sentido de urgência, igualmente tardio, pairou na cúpula de julho, em Belém do Pará, contra o financiamento ilícito dos crimes contra a Natureza. Há tópicos afins: segurança, economia, saúde e alimentação, urbanismo, soberania. A iniciativa parte da Secretaria do Tesouro americano, daí um montão de conspícuas autoridades governamentais, bancos e órgãos internacionais presentes. Há falta de especialistas para lidar com a lavagem de dinheiro, alerta Robert Muggah, em estudo do Instituto Igarapé [https://igarapé.org.br]. Follow the Money é quase um prestar contas de apelo a essa luta, ante as “tensões ideológicas e desconfianças, que ainda superam os interesses convergentes”.
Num interessante, e curioso, jogo de “vale a pena perguntar”, cinco pesquisadores brasileiros dissecam o tema ‘meio ambiente e desenvolvimento’ em livro da Fundação FHC. Aí está a Amazônia, que acreditam (em geral) recuperável ante o alcunhado ogronegócio depredador. Aí está o Brasil como o único país em condições de ser carbono negativo até 2045. Mas os custos continuam além e o capital aquém. Estimativas do Fórum Econômico Mundial dizem que apenas para regenerar as áreas desmatadas de 2019 a 2022 seriam necessários de US$ 50 por hectare (regeneração natural) a US$ 2 mil por hectare (replantio).
Outro ator importante em cena, celebrando seus 50 anos, a Agência Internacional de Energia – fundada em resposta à crise do petróleo 1973-1974 – ganha mandato extensivo a uma série de questões. Sentença decisiva: a necessidade de redução drástica do carbono da atmosfera exige escolhas difíceis, além de investimentos, de grandeza infinita. A começar pelos produtos de combustível fóssil, já perdendo vez, e por reservas que se devem manter no solo. Será o gás natural liquefeito (LNG na sigla em inglês) o grande vencedor? A disputa entre Estados Unidos e Rússia por fornecimento ainda está com o primeiro. Contudo, Moscou resolveu entrar na corrida tecnológica de gasodutos terrestres, que a via marítima saiu de serviço desde o atentado à Nordstream.
Os menos e os mais. A mudança climática aflora em cheio a desigualdade social. Nega aos “menos” os benefícios a que os “mais” têm acesso. Hoje, só 15% da população global desfrutam de energia limpa, dizem as estatísticas. Se voltarmos o olhar para o espaço, vemos que as viagens espaciais, incluídas no estilo de vida dos ricaços, significam emissões de óxido de carbono surpreendentes. E puxam novo debate, “de atualização”, sobre uma taxação progressiva para todas as formas de ativo, e não só heranças e bens imobiliários. Uma “contribuição” abençoada pelos orçamentos públicos de educação e meio ambiente, e principalmente sistemas de saúde pública. Nestes, há uma sobrecarga de desinformação e total desconhecimento do que está acontecendo. A começar pelos vírus e doenças que voltam, mais resistentes, e pelos efeitos de ondas de calor e instabilidade das calamidades. A covid deixou rastros.
Nem tudo é negativo. Desenhados pela AIE, mapas ainda distantes da transição verde rastreiam um futuro de adaptação para melhor. As energias renováveis, ainda em começo de carreira, dispõem-se a zerar o carbono até 2050, contrariando os céticos. Aqui, o Brasil brilha. Como sempre, tem metas ambiciosas. Nos governos de início do século apostou num desenvolvimento com prioridade para as exportações agrícolas (sem reforma agrária), que se provou insustentável. Agora, em outubro 2023, recomunica à Convenção Estrutural sobre Mudança Climática a determinação de atingir, em 2025 a meta de 1.32 GtCO2, e chegar, até 2030, a 1.2 GtCO2. Em 2050, a neutralidade, enfim. Ressalva que essa contribuição excede largamente o nível de ambição esperado de um país em desenvolvimento.
Voltando aos marcos do clima, no ano de 2030 “entra em vigor” a política de baixo carbono. Para que, na segunda metade do século, seja passado um atestado de remoção do carbono da atmosfera. Sob pena de qualquer décimo a mais no grau de aquecimento desengatar ponto irreversível. Todos sairiam perdendo.