Um país doente

Bem a propósito. Apenas empossado, o felizmente cônscio governo eleito encerra um longo e tenebroso período de trevas e retoma a vacinação no país. Imunizar é preciso. Porque, não bastassem a Covid e suas variantes, o calamitoso descaso para com o setor de saúde permitiu um retumbante retorno da tuberculose e poliomielite e o agravamento do câncer, enquanto crescem, em proporção paralela, a mortalidade infantil e natal e a desnutrição. Não será por acaso a volta do Brasil ao mapa da fome das Nações Unidas.

A crescente perda da biodiversidade, danos ao meio ambiente (para os quais os conflitos também contribuem, e são muitos na Amazônia) e novas infecções somadas às velhas vêm mudando a natureza do que entendemos como ‘a carga do câncer’, sobretudo nos países mais fragilizados. Já aí estão a malária, por efeito do desmatamento (Brasil, Malásia, por exemplo), doenças infecciosas várias, provocadas por animais retirados de seu habitat pela exploração do petróleo, e sucedâneos. O temor de males oriundos de vírus leva as pesquisas de laboratório a quererem antecipar o desconhecido, mesmo incorrendo no risco de fazer “pular” os patógenos dos animais para os humanos, precipitando o pior.

A tuberculose é tão só uma das doenças infecciosas com raízes na pobreza e vulnerabilidade socioeconômica.

Análise meticulosa, acurada, de pesquisadores brasileiros foi publicada no volume 10 da revista The Lancet, outubro 2022 [www.thelancet.com/lancetgh]. Registra lamentável reincidência da doença no Brasil, no período janeiro 2015 a dezembro 2019, com base em dados do Sistema Nacional de Informação de Doenças Notificáveis (Sinan) e mortes, segundo o Sistema de Informação da Mortalidade (SIM). Os casos divulgados acusam aumento de 12% além do previsto pelas tendências históricas; 54% dos casos excedentes (homens de 20 a 29 anos) ultrapassam os 30% previsíveis. No cômputo das causas, entram também – além das condições precárias de vida, falta de assistência à saúde e de controle efetivo de doenças – o desemprego e o encarceramento. Em uma década (janeiro 2010 a dezembro 2019) foram 902.743 casos de tuberculose e 73.358 mortes, mais 44.856 mortes tendo a tuberculose como causa primária.

Rio de Janeiro – o estado com o maior número de casos excedentes. Outros estados dos mais afetados: Amapá, Roraima, Tocantins, Maranhão. A pesquisa ressalta o lapso de tempo, a protelação entre o diagnóstico e a morte. Ou seja, nenhum tratamento. Com a agravante do contágio, em que pese o novo mecanismo introduzido no país para confirmar diagnóstico, o Xpert MTB-RIF. A pesquisa aqui divulgada parece ser a primeira a estimar, com dados nacionais e metodologia consistente, o impacto da recessão econômica (2014-2017 oficialmente) na reincidência da tuberculose, desprovida esta de assistência capaz de mitigar os efeitos. Ao contrário, na sequência – a Covid –, o que se viu foi a calamidade de sobejo conhecida. No melhor dos cenários, esta década exigirá, também para a tuberculose, prioridade de saúde pública, não só no Brasil e América Latina, mas talvez em todo o mundo. Há um alerta dos cientistas para que os sistemas de saúde cheguem a migrantes e refugiados, um grupo demograficamente invisível, a incluir logo nas campanhas de vacinação.

Relevante, igualmente, outra análise também de um grupo de brasileiras agora quanto à mortalidade infantil. Crianças abaixo dos cinco anos, de origem indígena, negra e mestiça. Mortes evitáveis porque por desnutrição, diarreia, influenza e pneumonia. Há evidência científica do efeito destruidor das desigualdades sociais, enterradas no etnorracismo. “No Brasil, há uma agourenta interseção: diferenças de classe social, etnorraça, gênero e região ou local de moradia”, constata o artigo de pesquisadoras que se dizem atônitas ao chegar à cifra de 125,2 milhões de pessoas que estarão na lista da insegurança alimentar no Brasil.

Em queda vertiginosa, a vacinação infantil fez aumentar doenças infecciosas evitáveis, agravadas no curso da pandemia, que refletiu uma resistência descabida à Ciência. “Negacionismo científico, censura à divulgação de dados, falta de financiamento à pesquisa e à educação são expressões importantes desses sucessivos ataques que a Ciência brasileira tem sofrido”. Quanto ao câncer, a sobrecarga da doença é atribuída à falta de preparo para lidar com ela, bem como de recursos financeiros para tratamento e assistência paliativa de apoio.

Parte se explica pela própria história do país: escravagista, discriminatória, sexista, geralmente sem políticas públicas empenhadas em reduzir as múltiplas desigualdades. Mas falha também a parte da responsabilidade, cabível tanto a governos quanto à sociedade civil, que auguramos seja, enfim, assumida, a bem de todos e felicidade geral da nação.