Um ano de guerra e a Ucrânia tornou-se uma questão sui generis. Pensar na paz é, de fato, falar de política, economia, segurança, investimento, tecnologia. O fim da guerra teria motivos outros que não a paz. O tempo urge, o único consenso internacional a que se chegou é o cessar-fogo. Vago e um tanto irrealista nas interpretações que os proponentes têm do fim das hostilidades. Aos Estados Unidos preocupa a política, com o aproximar das eleições primárias. O presidente democrata Joe Biden, como de rotina candidato à reeleição, anda mal nas pesquisas: apenas 16% dos americanos sentem-se melhor do que ao início de seu mandato; 75% dos democratas e eleitores dessa tendência não o querem mais. É crença, em seu próprio time, que terá de mudar as percepções do povo, já que os indicadores apontam deterioração da economia – onde o calo lhe aperta. Com um traço de zombaria, Alastair Crooke, ex-diplomata britânico e diretor do Conflicts Forum, engendra uma cadeia, a partir do balão chinês estourado por um jato Raptor, em passeio recente pelos ares americanos. Diz: o balão Ucrânia também está furado, bem como o balão Otan. Mais o balão da capacidade industrial ocidental de fazer armas.
O calendário político dos Estados Unidos bem pode determinar o rumo próximo: “O zelo obsessivo de Biden está tornando a guerra por procuração da Ucrânia em questão existencial para os Estados Unidos. É também uma questão existencial para a Rússia. E duas potências nucleares em confronto existencial são más notícias”, opina Crooke. Espelhando a história, o ex-vice-ministro da Defesa do Vietnã, Nguyen Chi Vinh (citado no Diplo), diz: “Deveríamos dizer a nossos amigos ucranianos que não é judicioso deixar seu país tornar-se uma arma das políticas de poder, de se apoiar na força militar para afrontar seu imenso vizinho e tomar partido numa rivalidade entre grandes potências”.
A indústria bélica regurgita – vendas e lucros. Transborda para o mercado negro e grupos extremistas. Desova na Big Tech. O impacto econômico do complexo industrial-militar é um silenciador altamente eficaz. Livro da cientista política Joan Roelof, The Trillion Dollar Silence, explica os poucos protestos contra guerras desde o 11 de Setembro, marco da luta ao terrorismo. Também a pouca atenção à ameaça das armas nucleares. A penetração militar na sociedade civil e na economia doméstica (inclusive oferecendo emprego) ajuda ao disfarce de “segurança”, que promove o patriotismo, que cala liberais, progressistas, artistas, intelectuais, entidades religiosas e universitárias, e ativistas de direitos ambientais. Lobistas pró-guerra “invadem” a Casa Branca como funcionários. Avultam os defensores das novas armas nucleares – “menores, mais seguras e mais utilizáveis” –, aclamadas para uso no teatro do século XXI, de “guerra preventiva”. Como se tal fosse possível!
Apesar dos pesares, em curso já uma tênue linha de pacificação. Há um rush de reuniões, encontros e falas, inclusive à margem de eventos maiores. Biden e o chanceler alemão Scholz (que fez visitas também ao Oriente Médio, China e Brasil) conversaram por uma hora, face a face, era esse o objetivo, em fevereiro. Um mês antes, o chefe da CIA, Bill Burns, fora a Kiev encontrar o presidente Zelensky. Informou apenas que o apoio financeiro americano a Kiev terá cessado, quando a todo vapor a temporada das primárias. Enfático: “A China continua sendo o maior desafio geopolítico dos Estados Unidos, por décadas à frente, e a maior prioridade da CIA”. Também o secretário de Estado, Anthony Blinken, encontrou o ministro do Exterior russo, Sergey Lavrov, à margem do G20, em Nova Déli. Dez minutos. Para um aperto de mãos? Afinal, é sabido que Moscou só negocia se aceitas “as novas realidades territoriais” da guerra.
De longe, Zelensky dispara. Uma busca incessante por apoio, armas, dinheiro, investimento. Recebe autoridades em Kiev, viaja, telefona, faz vídeo-entrevista. Prato na mão. Assim fez com Biden, Lula, Bill Burns, Boris Johnson (ora um lobista em Washington), e o principal executivo da BlackRock, Larry Fink. A guerra está privatizada faz tempo. Então, basta “privatizar” a paz, levando a reconstrução da Ucrânia a este modelo de conglomerado que administra investimentos de US$ 8,5 trilhões. Os países nesse Eldorado podem apostar na “energia verde contra o combustível fóssil russo sujo”, argumento Zelensky. Um maná para a política corporativista, tal qual a defende Klaus Schwab, fundador e diretor do Foro Econômico Mundial: “O papel fundamental dos negócios é continuar sendo negócios”. Os salvadores do mundo. Mesmo se as atuais relações entre o patronato e as empresas subjugam os sistemas democráticos (ou potencialmente democráticos) de partidos políticos e eleições.
Na guerra ou na paz, subsistem a lavagem de dinheiro, suborno para acordos, dança de alianças. Zelensky levou ao G20 mais pedidos de mais armas, mais dinheiro. A Scholz e Macron, que lhe exortaram urgência em iniciar conversações, respondeu (segundo as mídias sociais): “Não há o que negociar, e ninguém em Moscou para negociar”. Do outro lado, Vladimir Putin e Xi Jinping trocaram ideias, pessoalmente, duas vezes: pouco antes da Operação Militar Especial e agora, um ano depois. Reafirmam sua parceria estratégica inclusiva. Vetores do mundo plural, arcam com décadas de fustigamento e sanções econômicas. São os alvos de confronto com o Ocidente coletivo e, por extensão, do confronto direto com o Império. Biden desabafou ao Conselho de Segurança Nacional, em outubro: “A pós-guerra fria acabou definitivamente, e a concorrência em curso entre as grandes potências irá formatar o que se seguirá”. A China quer exercer um papel direto nesse jogo da paz – e “devolver” ao Império a guerra híbrida que enfrenta. À moda das velhas dinastias chinesas, cala e prepara-se.
Nesse cenário, abre-se o próximo teatro de guerra: a Ásia. O Japão vira a página do pacifismo e adota nova doutrina: a China é um concorrente estratégico; Coreia do Norte e Rússia, adversários. Aumenta a militarização, sob o argumento de mudança rápida na situação do entorno japonês. Dobrados os gastos com defesa (armas compradas no mercado estadunidense), o país terá o terceiro orçamento militar do mundo – muito breve. Os japoneses e seus vizinhos inquietam-se. Taiwan assombra há duas décadas. Um fantasma prestes a se materializar. Em Israel o governo de extrema-direita procura o rumo da guerra (por procuração?) contra o Irã. Pouco se fala de paz, muito se pensa na guerra.
Um recuo no tempo, estamos no Rio de Janeiro, 27 de agosto 1936. Em conferência na sala de concertos do Instituto Nacional de Música, A Unidade Espiritual da Europa, Stefan Zweig extasia a audiência, segundo Alberto Dines, seu biógrafo. Encerrava essa primeira visita ao Brasil, ali lançando as primeiras sementes de “Brasil, um país do futuro”, capaz de contribuir para a real pacificação do mundo. Uma reconciliação, dizia, que não poderia partir só da Europa, seu lar espiritual. Quatro anos depois iria repetir a conferência em Buenos Aires, remodelando alguns trechos (Creadores, Editorial Tor, 1942), pois à Guerra Civil espanhola sucedera a II Guerra Mundial, “que universalizou o conflito e elevou sua dramaticidade a níveis inauditos”. Zweig dizia-se um náufrago diante do “desmoronamento da nossa civilização, do aniquilamento daquele ideal supremo que chamamos humanidade”. Já então denunciava a traição da ciência e tecnologia; acusava políticos, militares, diplomatas e pensadores de valorizarem exclusões e preconceitos; enaltecia o Novo Mundo como uma expressão de convívio entre diferentes etnias, culturas e religiões. “A Europa faltou a seu dever de pacificar e civilizar o mundo… A Europa despojou-se de seu direito da direção espiritual do mundo”.
O apelo dolorido de Stefan Zweig faz-se perceptível ao público. A “jovem e promissora” América do Sul começa a ser apresentada como o paradigma de uma humanidade descentrada, sem epicentros e hegemonia, plural. Zweig, mais atual que nunca, encarna a própria ideia de paz a ser construída por um grupo de países afins, conforme acenada pelo Brasil neste mandato do presidente Lula. Muito além da atmosfera de canhões e dólares que toma os adeptos do “são os negócios, estúpido!”