Clecy Ribeiro, jornalista, professora.
No mosaico de dessemelhanças e contradições, os países africanos, apenas percebidos quando da descolonização e independência, continuam a caminhada para a democratização. A entrada do século XXI acusa a volta de golpes, governos despóticos, avanços e recuos no processo político, rumos incertos. Um tabuleiro amplo: elites políticas com acúmulo de riquezas; estratégias próprias de militância; influência das diásporas; tensões e conflitos étnicos e governança o mais das vezes associada aos recursos naturais. Entra também o contexto religioso, com as insurreições jihadistas na Somália, Moçambique e bacia do Chade. Cabo Verde e São Tomé e Príncipe são menção honrosa, com políticas de liberalização e abertura econômica. Apesar de tantos pesares, aceito o pedido de adesão da África ao G20, o debate está em curso. O continente projeta-se, em meio à instabilidade interna e choques externos. Herança dos colonizadores, a violência é uma linha guerreira da qual os movimentos de libertação africanos ainda não se libertaram.
Rússia. Ainda ambivalentes quanto a definir um alinhamento, os governos africanos são cortejados por uma China ansiosa em expandir sua aposta alta na Nova Rota da Seda e na parceria fiel com a Rússia. O pêndulo desloca-se. Seduz a abordagem de cooperação, apoio, não interferência em assuntos internos. “Problema africano, solução africana”. Paira um manto de desenvolvimento, incipiente, com data marcada a partir da paz, segundo a Agenda 2063, documento da União Africana lavrado há dez anos como estratégia de industrialização.
O início deste ano celebra dois importantes encontros: dos líderes africanos com a União Africana (cúpula anual), na terceira semana de fevereiro; a segunda cúpula Rússia-África, de 13 a 15 de julho, em St. Petersburg. Esta tende a estender os objetivos da primeira, em Sochi, 2019. São vínculos econômicos. Uma cooperação em nível federal e regional. Cerca de 40 regiões russas têm, já, parcerias diretas com países africanos, em setores industriais (automobilístico, metalúrgico, químico), de ciência, medicina e veterinária, educação. Krasnodar, por exemplo, incluiu a África do Sul em seu comércio, turismo e produção de vinho. St. Petersburg e Angola tratam de educação, Uganda, do setor ambiental. No Congo, a Lukoil tem parcerias, mas negocia novos projetos como operadora única. Cobalto. Já os agronegócios da região de Voronezh dirigem-se a Ruanda e Uganda.
O encontro em St. Petersburg significa competir com a cúpula Estados Unidos-líderes africanos, em Washington (dezembro 2022). E também demonstrar o quanto valem as conexões russas com a África. Tanto assim que o infatigável chanceler Sergei Lavrov fez uma “visita de trabalho” à África do Sul, em 23 de janeiro. Porque esse é o quinto país membro dos BRICS, grupo em ascendente projeção no mundo múltiplo. Porque, embora insignificante o intercâmbio comercial, o país participou de recentes exercícios navais conjuntos no Índico, com a China e Rússia (desta apenas a fragata ‘Almirante Gorshkov’). Já pesa.
China. Novas alianças desfazem as infiéis. Novo impulso substitui a pregação ocidental “TINA- there is no alternative”. Há alternativa. As resoluções (inócuas) da ONU servem de teste ou termômetro. Quem está com quem? Na segunda década do século, por volta de 2015, a ajuda chinesa à África crescera a US$3 bilhões (Johns Hopkins University), via investimentos em rotas de comunicação e unidades de produção. Sempre levando trabalhadores chineses, mesmo com o clamor contra a perda de empregos locais. Os africanos ouvem: que se cuidem para conquistar ganhos. Na Nova Rota da Seda (marco em 2014), umas 50 estatais chinesas empenham-se agora em dois mil projetos de infraestrutura. Braço da Rota da Seda Marítima, tem três passagens econômicas enfeixadas por uma cadeia de portos, a partir do mar do sul da China até a África. (Também Ásia e Europa). Como complemento, acordos militares em Djibuti e Namíbia (África), além de Paquistão, Sri Lanka e Pireus.
Para conter riscos de bloqueio ou crises eventuais, a Rota redireciona o tráfego para aglomerados em portos no Sudão, Mauritânia, Senegal, Gana, Nigéria, Gâmbia, Guiné, São Tomé e Príncipe, Camarões, Angola, Namíbia. Outra rota ligará Djibuti a quatro conexões até Hong Kong. O arco final vai da baía de Walvis ao Quênia. É, de fato, uma renovação das rotas antigas entre China e o leste africano, sob o argumento de que a infraestrutura – inexistente ou inadequada – configura o maior entrave ao desenvolvimento e integração regional. De resto, a África é um importante consumidor da capacidade industrial chinesa a mais: carvão, cimento, aço, vidro, alumínio, construção naval. Até mesmo tecnologia, para uso próprio da China em terras africanas: inteligência, vigilância, monitoramento, resposta.
Financiamento chinês, retorno africano. Na troca, ditam os interesses. William Gumede, economista sul-africano, menciona alguns: concessões de mineração ou partilha na produção doméstica de petróleo, adesão aos BRICS, apoio à China em organismos internacionais. São interesses políticos que movem Pequim, desde os idos da independência africana, quando em busca de aliados na via do socialismo. A dimensão comercial começa nos anos 1990, com o crescimento da China, até então parte do Terceiro Mundo. Hoje, tenta afirmar-se consoante o preceito – compartilhado – de desenvolvimento pacífico, com qualidade. A modernização socialista, em teoria e prática.
Terras aráveis. Ao petróleo e minerais, cujo papel na economia explodiu na segunda década deste século, com apelo vital na formação dos Estados africanos, vieram somar-se as terras cultiváveis. Transnacionais, bancos, fundos de investimento e demais obreiros do ironizado mercado financeiro constataram que comer é saudável e decidiram (aí por 2007, 2008) instalar fazendas industriais gigantes na África, mas para produção totalmente exportável de alimentos. As populações locais continuarão mal nutridas. Ora, é sabido o potencial da Rússia no fornecimento de produtos agrícolas e fertilizantes, e a canoa pode virar.
Como dizem os banqueiros, “a terra é um meio de investimento tão ou mesmo mais seguro que o ouro”. A maioria dos governos africanos bate-se, há anos, por produção local voltada ao próprio suprimento alimentar. Em setembro 2021, carta aberta assinada por 200 organizações (35 da Aliança para a Soberania Alimentar na África e 165 de organizações aliadas, em 40 países) exorta os doadores da falida Revolução Verde a suspenderem os fundos de apoio à agricultura industrial e voltarem-se à expansão agroecológica das fazendas africanas. Meses antes, em junho, um grupo de 500 africanos enviara Carta à Fundação Melinda e Bill Gates pedindo o mesmo.
Em plena ascensão, o multilateral vai assumindo contornos concretos. A infraestrutura do aço e concreto e as tecnologias modernas aproximam os povos, constroem a comunicação entre tudo e todos. A China luta contra a camisa de força ideológica; todos os modelos de governança são válidos. A Rússia endossa. Nesse jogo de escolhas, a África, quem diria, começa a incomodar os Estados Unidos.