De mal a pior. Trata-se, infelizmente, da Europa. “Nem eu nem meu leitor contemporâneo veremos quem a tomará ou a quem essa velharia será vendida”, deplora o filósofo francês Michel Onfray, que discerne já alguns pretendentes. “O cristianismo judaico esgota-se, é uma potência de seu tempo… A civilização nascente irá obedecer ao mesmo esquema que a conduzirá do nascimento ao desaparecimento”. Tão eloquente quanto, o presidente Macron clamou na Sorbonne, em maio: “Nossa Europa é mortal. Ela pode morrer e isso depende, unicamente, de nossas escolhas”. No crescendo, o controverso escritor sueco Andreas Malm decreta já a morte de todo o planeta: “A destruição da Palestina é a destruição da Terra”.
Edição espanhola de Pele branca, combustível negro, nesse livro Malm alonga-se sobre “os perigos do fascismo fóssil”, desvelando a visão sionista de nação etnicamente homogênea, e o “verdadeiro perigo” de não-brancos em demasia – muçulmanos, destaca – nas terras a que se atribui o domínio. O livro rastreia uma nova constelação política, precisamente na Europa, em que as forças da Direita canalizam o objetivo de fechar todas as portas, a começar pelas fronteiras. Companheira do genocídio e das migrações, a destruição de Gaza nutre a sanha de extrair mais e mais petróleo e gás, ganhar mais e financiar mais guerras, que aceleram e aumentam a emissão do dióxido de carbono, que invade os ecossistemas interligados, do Ártico à Antártica. A nabka, catástrofe de Gaza em metástase, atinge povos e países por saturação cumulativa. Próximo a Gaza, a tempestade tropical Daniel abateu-se sobre a cidade libanesa de Derna, em 9 de março 2023, com seus ventos e águas em torrente na rota da Grécia, Bulgária, Turquia, Egito, Israel. De 18 mil a 20 mil mortos/desaparecidos e 25% de Derna varridos mar adentro.
Os desastres naturais sucedem-se. Europa, Américas, Amazônia, Ásia – por toda parte. Respostas ao alerta ignorado desde os anos 1980, repetido por toda a década de 1990, e em diante. Pesquisa entre cientistas e experts do clima, realizada pelo jornal The Guardian, projeta efeitos além do limite de aquecimento fixado em 1,5 graus C. A 2 graus C, o mar engole as cidades de Xangai, Rio de Janeiro, Miami. A 3 graus C, o sionismo bíblico realiza seu sonho.
São 27 países reunidos na União Europeia, mas desunidos entre si. Elegem, de 6 a 9 deste mês de junho, o Parlamento Europeu 2024, que testemunha: uma guinada marcante para a extrema direita, a “coincidência” de manobras militares da Otan até às portas da Ucrânia, economias em declínio e preços em alta, insatisfação e ressentimento com as políticas de asilo. Um molho apimentado com a inseparável e irreparável catadupa de desinformação, “interferência externa” no topo e, no cerne, a sujeição ao atlanticismo e à ficção de segurança sob a Otan.
Ao invocar as “escolhas” europeias, Macron, que se arvora o papel de líder diplomático, destaca a questão vital de soberania. Seriam pilares o Acordo Verde (proteger a biodiversidade e ressuscitar a industrialização, produzindo mais e mais verde) e o projeto dissuasivo de defesa nuclear. Tecnologias estratégicas os acompanham. Mas e o capital?
Internamente, o Parlamento contorce-se na dança das alianças, o “swing”, com sete grupos mais um, de uns 50 políticos “não afiliados” ainda. A um mês das eleições (705 membros passam a 720), havia 140 políticos fora da disputa, por desistência. A extrema direita ascende com 30% dos assentos, o terceiro maior grupo. Na cauda, a Esquerda e os Verdes.
Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, tem o posto ameaçado e busca apoio que descontenta todos. Os nacionalistas, de sistemas domésticos bastante diferenciados, andam meio tontos com suas sociedades heterogêneas (os imigrantes). Só os socialistas/democratas S&D e o Partido Popular EPP mantêm-se na liderança, mas trocando o primeiro lugar. Segundo o autor Eric Hobsbawn, o Parlamento Europeu não tem futuro, porque não existe um “povo europeu”, mas “povos membros”.
Análise feita pelo Instituto Alemão para Questões Internacionais e de Segurança [www.swp.berlim.org] destaca a tendência à fragmentação política, com deslocamento dos centristas. Quase tudo tem a ver com a Otan, cuja expansão, anterior à da UE, é considerada um golpe político, para tornar permanente a antiga divisão da Europa. Na fila de entrada ainda estão a Moldávia, Hungria, Geórgia sem confirmar, os instáveis Bálcãs ocidentais. E a Ucrânia. Piada? Tem um presidente procurado e territórios em vias de anexação pela Rússia. Lembra Peter Gowan, em A Roleta Global, que o início da expansão, via Polônia, já era um prêmio maior para o imperialismo americano. “Um corredor combinado polonês-ucraniano para separar a Europa da Rússia, excluindo a Rússia também dos Bálcãs, contribui para assegurar o mar Negro aos Estados Unidos, se unir ao bastião turco na América e fornecer uma base muito importante para o ‘Grande Jogo’ relativo aos recursos de energia e minerais do Cáspio e das repúblicas asiáticas da antiga URSS”.
A alternativa. A falta de consenso estende-se à rivalidade China-Estados Unidos. “Rival sistêmico”, a China é condenada no Parlamento por aplicar sanções; há voto em linha com a posição ocidental. Este momento eleitoral faz oportuna a visita do presidente Xi Jinping (a primeira em cinco anos), mas apenas a três países: França, Hungria e Sérvia. A França contribui com um mercado estabelecido de EV, carros elétricos, que os chineses disputam com a Ford e BMW. Hungria e Sérvia, ambos na Iniciativa Cinturão e Rota, entram no rol dos amigos, raros na UE. A conduta de voto no Parlamento indica posicionamento, mas as decisões muitas vezes passam aos governos nacionais. Para além dos rumos da Comissão e do Conselho Europeu, o próximo Parlamento poderá bloquear leis necessárias a implementar o Acordo Verde, um nó quando se fala em soberania. Poderá também empuxar para uma linha mais dura em outras áreas de “soberania nacional” (migração, expansão, Ucrânia) e alimentar o eixo de uns seis governos que tentam limitar, de dentro, a influência da UE.
Pesquisa do Centro para Estudos Estratégicos Internacionais informa: 66% dos europeus já admitem o mundo multipolar; 15% endossam bipolaridade com duas potências competitivas; 10% gostariam de uma alternativa aos Estados Unidos; 9% seguem ainda a atual “ordem internacional baseada em regras”. A postos, como pretendentes a uma próxima civilização possivelmente desterritorializada, ouso supor: o cristianismo ortodoxo, o islamismo, hinduísmo, confucionismo. Quem viver, verá.