Guerra e paz

‘Cinturão e Rota’ faz dez anos como iniciativa inconteste. É a proposta da China para um mundo compartilhado. Por terra, mar e ar, e espaço sideral. Pela diplomacia da boa vizinhança. Pelas indústrias de inteligência artificial e as tecnologias do salto quantum e da biomedicina. Pelo verde que te quero verde. Ideias inseridas nas “próximas fronteiras do crescimento”, tema do Davos Verão, pela segunda vez realizado na cidade chinesa de Dalian, de 25 a 27 de junho passado. Encontro de economistas, empresários, políticos e tantos mais envolvidos, com justo destaque para a China no mundo – o Encontro Anual dos Campeões 2024.

No discurso de abertura do plenário, o primeiro-ministro chinês Li Qiang esboçou o pensamento chinês. A revolução tecno-científica avança. Transforma-se rapidamente o ordenar das atividades econômicas e das indústrias, com estruturas em rede. Assim, será preciso cotejar o crescimento da economia, projetar uma visão para além, de largo alcance, e dar-se as mãos para fazer o bolo maior. Conectividade, a mola propulsora. Qualidade, pela via das tecnologias positivas da revolução digital e da inteligência artificial, gerando indústrias made in China. Inovação e criação, o livre fluir de ideias. “A exploração de novas fronteiras não deve ser encarada como um jogo de soma zero. É um processo em que todos os atores competem por excelência e progridem juntos” (Li Qiang).

Abertura x isolamento. Mote chinês: a abertura traz progresso, o isolamento traz atraso. Somariam já mais de 160 países no rol BRI. Até a contrária Europa beneficia-se do transporte ferroviário de carga de alta velocidade. Pela proximidade e interesses, África e Ásia ainda têm a maior parcela. Mas, em que pesem as injunções hegemônicas, América Latina e Caribe ganham presença chinesa em expansão, em troca de exportações – matérias-primas e produtos agrícolas. Número um, o setor de geração e distribuição de energia (eólica, solar). Há também investimento nos acariciados minérios estratégicos ou críticos, imprescindíveis apesar de fonte de desestabilização, haja vista Brasil, Bolívia, Equador, Peru. Em novembro, o presidente Xi Jinping inaugura no Peru o novo e amplo porto de Chancay, 70 km ao norte de Lima. Evento do Fórum de Cooperação Ásia-Pacífico, antes da reunião do G20 no Brasil, 18 e 19 novembro, e da visita protocolar ao presidente Lula, dia 20. Segundo a Universidade de Boston, os projetos na região chegaram, em 2022, a US$ 10 bilhões e o comércio bilateral a US$ 450 bilhões.

A longo prazo. Na África, uma rede de alguns bons bilhões de dólares gira indústrias, de mineração a telecomunicações. No Oriente Médio, há incursões relevantes, alinhadas às metas de seus países, como a Visão 2030 da Arábia Saudita e o Centenial 2071 dos Emirados Árabes Unidos. São planos de longo prazo aos quais a China oferta investimento e expertise de construção, em projetos estruturais que se querem permanentes. Os BRICS+ incluem-se em vários projetos. Já reais, o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul, 7.200 km de extensão, ligando Rússia, Irã, Azerbaijão, Índia e Ásia Central. E a festejada ferrovia Uzbequistão-Afeganistão-Paquistão (2027), que ganha cinco dias no percurso. Ainda na premiada Ásia, a Ferrovia Trans-Afeganistão, na interseção do centro e sul, para chegar até os portos do mar da Arábia.

Em entrevista à agência Xinhua, o sinólogo brasileiro Felipe Porto diz que o principal desafio que a China confronta é “conseguir que o mundo confie em suas recentes iniciativas globais… devido à instabilidade no Oriente Médio, à notável volatilidade dos mercados financeiros mundiais e aos fenômenos meteorológicos extremos sem precedentes”.  Boa parte do mundo está quente, doente. Vive fome, guerra, doenças, conflitos regionais, desastres naturais. Eleições mudam ou não governos. Mas a aposta ainda é no capital como lastro, e não nos povos. A alternativa de modernização ao estilo chinês deu certo na China. Por quê? Ela reverencia a natureza, harmoniza homem e natureza, espiritual e material. Na leitura do People’s Daily, a explicação óbvia: “Paz e harmonia são conceitos herdados da civilização chinesa, há mais de 5 mil anos”. De fato um rejuvenescimento, a modernização chinesa tem, portanto, genes culturais. Ao contrário do Ocidente, como ressalta, que optou pelo processo de destruição, inoculando violência no planeta – e cobiça.

China fora do lugar-comum cultural. Diferenças culturais entravam o comércio entre países, mas isso não ocorre com a China, esclarece o professor de economia Bedassa Tadesse [https://theconversation.com]. Abordando a questão lugar-comum do cultural – idioma, costumes, valores, normas de negócios -, analisou intensiva e extensivamente 90 países, durante 16 anos. Chegou à conclusão de que a única exceção à regra é a China, que não sofre influências. O que a faz diferente? “Suspeito que a estratégia comercial nacional da China, envolvendo indústrias de exportação apoiadas pelo Estado, e investimento de peso em infraestrutura, constitui boa parte da resposta. Alinhando-se com as necessidades de desenvolvimento econômico de seus parceiros comerciais, a China pôde atomizar os efeitos negativos das diferenças culturais… Um exame acurado das parcerias na África, Oriente Médio e América Latina pinta uma tela viva…“

China de mãos estendidas. “A exploração desconhece fronteiras. A China estende as mãos a todos os países para singrar o vasto oceano azul, no navio gigante da economia mundial, e criar um futuro ainda mais promissor para a humanidade”. Um convite de Li Qiang, em contraste com a Declaração da Cúpula da Otan [www.nato.int], dia 10 de julho, em Washington – um primor de belicismo. Sob o rótulo de “tempo crítico para nossa segurança” e “Otan é uma aliança defensiva”, faz do artigo 15 ao 33 a apologia da guerra na Ucrânia. O Compromisso de Longo Prazo de Segurança e Assistência soa como mais uma das guerras hegemônicas eternas. Já em 2025, “financiamento básico mínimo” de 40 bilhões de euros, no contexto da decisão de “derrotar a agressão russa”. E a Otan expande sua fronteira sul, com a abertura de um escritório de ligação em Amã, embora conte com a Otan/Iniciativa de Cooperação Istambul, no Kuwait. Alguns artigos aludem à China como ameaça (políticas coercitivas e parceria estratégica com a Rússia), bem como à República Popular da Coreia e ao Irã. Outros expõem como necessidade a modernização dos armamentos e a política de portas abertas da aliança, de novo “assustada” com o terrorismo que ela própria gera.

 Nada de novo. Mas parece uma hora crucial para pesar as próximas fronteiras da construção ou da destruição.