Vamos falar de Deus?

Para o que pretendemos decidimos trilhar pelo caminho da Linguística, que é a ciência que estuda a linguagem humana, suas estruturas, funções, desenvolvimento, variações e o uso social e psicológico das línguas. Comecemos – sem nos aprofundarmos em terminologias científicas sobre o estudo da linguagem – com apenas dois conceitos propostos pelo linguista suíço Ferdinand de Saussure, que é considerado o pai da linguística moderna: significado e significante. Coloquemos junto a ele Jacques Lacan e sua reinterpretação psicanalítica dos termos. Para Saussure significante refere-se à forma sensível do signo linguístico, ou seja, a sequência de sons ou letras que compõem uma palavra. Por exemplo, a palavra “árvore” é um significante. Significado, por sua vez, refere-se ao conceito ou ideia evocados pelo significante. No caso da palavra “árvore”, o significado é a imagem mental ou o conceito de uma árvore, com seu tronco, galhos e folhas.

Na psicanálise lacaniana, os conceitos de significante e significado são essenciais para a compreensão dos processos inconscientes e da formação do sujeito (ressaltamos que a “matéria prima” da Psicanálise são os processos inconscientes). Lacan propõe que o sujeito é um efeito da linguagem e está perpetuamente em busca de um significado que nunca é plenamente alcançado e que o significado de um termo pode mudar dependendo de seu contexto e das associações inconscientes que evoca. Utilizou os conceitos de metáfora e metonímia para explicar como os significantes operam no inconsciente. A metáfora envolve a substituição de um significante por outro, criando novos significados. A metonímia, por outro lado, envolve a contiguidade, na qual um significante remete a outro de forma associativa.

Compensações. Para explorarmos a natureza da espiritualidade sob a perspectiva da linguística e sua relação com o desenvolvimento humano, que envolve a busca por sentido, propósito e conexão com algo maior do que o próprio indivíduo, diremos que esse algo maior não precisa ser necessariamente uma entidade divina existente em si mesma e separada do ser humano como o senso comum e o construto teórico de diversas religiões levam a concluir, qual seja um “Deus” entendido basicamente como um ser supremo individualizado – portanto separado do homem com individualidade própria e exclusiva – dotado de vontade e poderes para alterar a realidade da vida do homem, a seu arbitrário e exclusivo critério a partir de pedidos, solicitações ou qualquer espécie de troca ou acordo: “Dê-me isso que eu lhe dou aquilo”, ou “Faça por mim como lhe peço, afinal eu obedeço as suas ordens!”.

RC como referência. Os estudos de Saussure e de Lacan nos oferecem amplo campo de estudo e reflexão tendo os conceitos espiritualistas oferecidos pelo Racionalismo Cristão como referência. Vejam a relação estabelecida: o sujeito (ser humano) é um efeito da linguagem (que é produzida pelo pensamento) e está perpetuamente em busca de um significado (o conhecimento de si mesmo, de onde veio, onde está, para onde vai) que nunca é plenamente alcançado dadas as limitações humanas e o fato de que a evolução é processo infindável. Em outras palavras, o espírito, na condição de ser humano vinculado às necessidades evolutivas inerentes ao curso da evolução oferecidas por este planeta-escola, se desenvolve a partir da linguagem (pensamentos) com a qual se relaciona (recebe ou emite) – palavras, conceitos, valores expressos e compartilhados na linguagem; está perpetuamente em busca de um significado para a vida que nunca será plenamente alcançado, pois a evolução é eterna e a verdade absoluta do Todo Universal não está ao alcance dos escassos recursos disponíveis neste planeta para tal fim.

Algo maior. Tendo como referência a existência de algo maior do que você e eu, qual seria então o significado e a “função” de Deus? Ou em outras palavras, quando se fala em Deus qual o significado, imagem mental ou o conceito que a palavra lhe evoca?

Nossa interpretação é a seguinte: “Algo maior” implica, obrigatoriamente, a existência de algo que transcende o indivíduo e a adesão a um propósito despido de egoísmo, que busca o único e exclusivo interesse pessoal. Implica renúncia, paciência, compreensão da condição humana nos relacionamentos interpessoais, diversidade etc. Ao nosso raciocínio configura-se que, partindo do princípio de que a espiritualidade é uma faceta da existência humana que transcende a matéria e avança às ideias (ou a ideais) maiores que o próprio eu, esse algo maior não precisa ser necessariamente Deus. “Algo maior” pode ser compreendido como a própria humanidade, a natureza (da qual o ser humano é parte inseparável), o Universo ou mesmo um simples ideal filosófico que englobe aspectos emocionais, psicológicos, éticos e comportamentais. Neste contexto e pela perspectiva transversal entre os conceitos da linguística e da Psicanálise apresentados por Ferdinand de Saussure e Jacques Lacan e os conceitos espiritualistas defendidos e divulgados pelo Racionalismo Cristão qual (ou quem) seria, metaforicamente, o “Deus” a que deveríamos tomar como referência de conduta?

Homens bons e maus. A propósito disso e para “apimentarmos” ainda mais a reflexão, é sabido de muitos que existem ateus – pessoas que não acreditam em “Deus” – que têm padrões éticos, comportamentais e sociais mais evoluídos do que muitos dos que se dizem espiritualistas ou membros de alguma organização espiritualista. Podemos citar apenas um, pois foi declaradamente ateu convicto enquanto vivo e é respeitado como o maior nome da literatura portuguesa contemporânea, sendo o primeiro e até a presente data único escritor em língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, José Saramago, a quem é atribuído o seguinte diálogo sem fonte clara, mas recorrentemente citado em vários sites na internet: Perguntaram a ele “Como é possível os homens sem Deus serem bons?”, ao que Saramago respondeu “Como podem os homens com Deus serem tão maus?”

Na ocasião da morte de Saramago, em 18 de junho de 2010, o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Conferência Episcopal Portuguesa, Padre José Tolentino, e o porta-voz da Conferência, Padre Manuel Morujão, fizeram referências positivas ao escritor, comentando sua relação com a Igreja Católica e lamentando sua morte: “(…) o país perde um ‘expoente’ e a Igreja perde um crítico com o qual soube dialogar constantemente. (…)”. “Ele olha para Jesus, nem tanto como uma chave para o divino, mas como uma chave para o humano. Nesse sentido, para um teólogo, Saramago é um autor incômodo e fascinante”. (…) “Sem dúvida, a acusação que Saramago faz ao cristianismo é muito mais ao institucional, ao poder histórico, do que propriamente ao cristianismo messiânico de Jesus de Nazaré”.

Padre Manuel Morujão chegou mesmo a conjecturar o seguinte: “Penso que Deus, ao encontrá-lo na eternidade, terá havido alguma surpresa: ‘como o senhor tem a coragem de me dar um abraço se o critiquei tanto?’”, imagina o padre, referindo-se a quais seriam as palavras de Saramago. No suposto diálogo, na visão do padre, Deus responderá: “você criticou outro, não o Deus do amor e da misericórdia.” (Citações constantes em https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2010/06/igreja-catolica-de-portugal-lamenta-morte-de-saramago-ateu-e-critico.html).

Então, vamos falar de Deus?