Se um mata, o outro esfola

“Talvez tenhamos chegado ao ponto além do qual a ordem internacional mude para sempre”.  Fawaz Gerges, autor libanês-americano, acredita que estamos em vias de uma grande ruptura e um já então acelerado declínio na ordem liberal capitalista liderada pelos Estados Unidos. Reflexo das eleições presidenciais de 6 de novembro, onde há de tudo um pouco mais. A começar por Old Joe, espelho dos políticos americanos agarrados ao poder como ostra na concha. Infeliz final de mandato de pato manco. Infeliz o desistir da reeleição – imposta pelo próprio partido, ao custo de psicotrópico em dose suficiente para um debate patético. Enfim, por um acordo: arquivar todos os processos do filho Hunter (investigações concluídas há um ano), envolvendo drogas, armas e recebimento de comissões ilegais da empresa ucraniana de energia Burisma Holdings, entre 2013 e 2018. Plausível, a julgar pela causa.

 Do lado republicano, Trump, também na linha dos fora de prazo (última disputa eleitoral), alardeia atentado para alentar a campanha. Nos bastidores, confiou ao amigo e ex-candidato independente Robert Kennedy Jr. que o suposto tiro partiu de uma miniatura de drone da empresa Darta, ainda fora do mercado, equipado com lâminas afiadas, cujo som lhe soou aos ouvidos como “o maior mosquito do mundo”. Plausível, a julgar pelo curativo. E assim persiste o costumeiro embate de dois partidos, apesar de terceiros candidatos chegando ao porcentual de 40%, segundo pesquisa Gallup, dezembro 2023. A fórmula, consagrada, concede ainda beneplácito de escolha às grandes corporações, com financiamento, por exorbitante que seja, liberado para as campanhas, desde 2010.

Sociedade geriátrica. No espectro geral, desigualdade crescente e fraturas internas: quanto à violência (o campus universitário), direitos (o aborto lidera), imigração e xenofobia, educação endividada, assistência à saúde desastrosa (sem plano futuro definido), transição climática ainda despreocupada. O Pew Center de pesquisas registra oito ou nove ideologias distintas no eleitorado, e sequer uma visão comum. Erosão de confiança, uma constante. O ex-presidente e candidato Donald Trump, 78 anos, tem 91 acusações criminais e 56% de desaprovação, a 20 dias das eleições. O mandato Biden finda com apenas 39% de aprovação. O analista Peter Laarman se surpreende: por que é tão difícil ao homem branco, sobretudo idoso, abandonar a ribalta? Old Joe e Trump têm companhia. O Senado americano pareceria mais uma  “sociedade geriátrica” masculina (há os que passam dos 90 anos), que se copia no corporativismo com Rupert Murdoch, por exemplo, na mídia. Teria o eleitor, agora, um quadro reverso com o “revitalizador rejuvenescimento” da política via Kamala Harris?

Nos assuntos externos – uma extensão da política interna –, prevalece a política de três poderes, segundo Emanuel Pastreich, candidato independente em 2020. Agora é a vez dos generais, arrastando políticos e banqueiros. A “trindade de capital acumulado, ideologia manufaturada e guerra brutal de classe”. A postura partidária subsiste; difere apenas, talvez, no modo de expressá-la. Sistemáticos, os democratas afirmam-se na belicosidade; os republicanos deslizam pelo emocional. Nesse contexto, reconhecem a devastação em Gaza e o horror das atrocidades cometidas, mas prestam apoio irrestrito a Israel. Trump diz que os judeus não irão perdoar-se se ele perder as eleições, e que acabaria com o conflito na Ucrânia “em um dia”. Biden (e Harris o secunda) persiste na ajuda militar tanto à Ucrânia quanto a Israel, por bons motivos: o dinheiro volta para o Pentágono, com a venda de armas.

 No entanto, lembra o analista militar Scott Ritter que o Pentágono é o único imune ao lobby sionista. Acaba, assim, com a “voz corrente”: elege-se quem o sionismo apoiar. E lembramos nós que, há duas décadas, os Estados Unidos preparam a guerra contra o Irã [https://www.globalresearch.ca/greater-israel-the-zionist-plan-for-the-middle-east/5324815]. Um extravasamento da ideologia de supremacia do homem branco, tornado irrealizável pelo clamor dos tempos. Quando Israel, agora, joga no colo de Washington o conflito ampliado, às vésperas do 6 de novembro, seria preciso que o Irã desse uma séria resposta a um ataque israelense para suscitar interferência americana “em defesa” do aliado. Há um alarme: Site 512, outra base instalada no Negev. Fica a um alcance de 700 milhas do Irã, com alojamento para mil homens. Mas também há indícios de redefinição das metas principais no âmbito militar. O efeito clima chegou para ficar. O próprio Pentágono admite que, nas duas próximas décadas, as Forças Armadas dos Estados Unidos e China estarão devotando boa parte de recursos e atenção a aliviar e recuperar desastres climáticos, reduzindo a capacidade de fazer guerras.

Debates de experts no Clube Valdai [https://valdaiclub.com] expõem o pensamento de Rússia e China, os maiores desafetos, quanto ao próximo governo americano. Para os russos não faz diferença, vão continuar as sanções, o conflito na Ucrânia (salvo acordo) e todos os inconvenientes com que lida há anos. Qualquer resultado será meramente secundário – para as relações entre ambos e o Ocidente Coletivo. Devota-se à Maioria Global. Pequim sente-se mais vulnerável. Lida com as importunas provocações (venda de armas a Taiwan, mais alianças com as “democracias” do Pacífico asiático, navios passeando por lá), arca com medidas restritivas ao comércio, tecnologia, comunicações e, ainda, as notórias sanções, sob novos mecanismos legalizados pelo Executivo/Congresso. Talvez, mesmo, veja avançar a retórica vazia, por irreal, da “América democrática” versus “China autoritária”.

Pacto para o futuro. Parece que os democratas aceitam, menos que os republicanos, o conceito de mundo multilateral em curso. Os BRICS afirmam-se como um ímã, um símbolo para evadir o Ocidente hegemônico. Com escopo básico: abertura de mercado, comércio livre, intercâmbio tecnológico, moeda própria, outra estrutura financeira universal. Lançado na ONU por Washington, o Pacto para o Futuro seria o contraponto do Ocidente à Maioria Global, além das alianças estratégicas definidas na Cúpula da Democracia, fins de 2023. “Por que é que a sociedade ocidental tem sido tão indiferente, tão irrefletidamente favorável ao abandono de seu ethos civilizacional?” – indaga o diplomata e autor Alastair Crooke.

 Estados Unidos, eleições 2024. Em quem votar? A menos de um mês, só 10% sabiam responder.