Eis o rótulo perfeito: Brasil, o país do futebol

Pênalti não é coisa que se perca. Brilhante sentença do jornalista Otelo Caçador, que se mantém viva atravessando os tempos, bons ou maus, e merece ser lembrada face à recente barafunda de um grupo de militares e civis primários na arte de puxar tapete. Pode-se considerar que há certa semelhança entre deixar de marcar um gol num tiro de quase gol e deixar pela estrada a caminhada para derrubar um governo eleito e constituir outro em conflito com o regime democrático. Daí poder-se dizer: golpe de estado não é coisa que se perca pelo caminho e, pior, que exponha os revoltosos. Ou se vai às consequências ou não se aciona o motor de partida. Se não funcionou foi porque os interessados não foram competentes bastante. Para o bem de todos e felicidade geral da nação, fica tudo como estava. Parece até a célebre declaração de Dom Pedro I, quando, atendendo ao apelo popular, preferiu não retornar a Portugal.

Brasil é um país menino, apenas 524 anos, existência em que atravessou várias formas de governo e experimentou vários golpes de estado, tanto os consumados quanto os que morreram na praia, ora para impedir a ação da esquerda, ora para conter o avanço da direita. Noutros tempos, em outras gerações de brasileiros, houve golpes que chegaram a termo, mas a maioria morreu no ninho, por inexperiência ou incompetência das lideranças. As tentativas de golpe de esquerda foram mal sucedidas, nenhuma vingou; as de direita foram mais felizes. E não esqueçamos a de 1930, que não era contra nem a favor de esquerda ou de direita além da simples tomada do poder. É bom não esquecer também a articulação golpista de Jacareacanga, em que o presidente, magnânimo, anistiou os revoltosos e libertou seu líder, único preso.

É de se estranhar que um militar de patente mediana, mal saído da condição de soldado raso, tente liderar superiores hierárquicos estrelados e gemados numa campanha suicida, sem fundamento e sem apoio popular ou da tropa. Golpes de estado são estopins para revoluções e estas só vingam com apoio do povo ou com a força das armas, nesse caso culminando em ditaduras. A Polícia Federal apurou que o propósito era exterminar o presidente e o vice-presidente da República e um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), relacionou e indiciou 37 envolvidos nessa trama, incluindo um líder religioso, e apontou o chefe-articulador.

O brasileiro, de modo geral, mais preocupado com os feriados, porque pode passar o dia com a família, e como alimentar essa família e pagar as contas com o curto salário no fim do mês, não está preocupado ou não se dá conta das consequências da violência de um golpe de estado. Não reage e por medo, às vezes, nem faz comentário. É preciso reagir, assumir uma posição. Ser contra ou a favor, interferir, acrescentar sua marca. Não deixar os fatos seguirem ao sabor dos ventos. Foi assim em passado recente pelas ‘diretas já’, pelos impeachments de Collor e Dilma. Por que não agora? É preciso aproveitar enquanto a bola está na distância regulamentar da linha fatal; quando for lançada poderá não haver mais alternativa. Não há que se esperar pelos acontecimentos de gabinete. Se preciso, é hora de ir às ruas exigir a aplicação da lei.

Já que falamos de pênalti, acrescentemos que o Brasil esteve em vias de sofrer um gol por mais um ataque pela direita. O meio-campo está produzindo com atraso, obrigando-se a um desgaste desnecessário para conter certas investidas adversárias e assustando a torcida, que não quer a volta dos anos de chumbo. Quem treina esse time dorminhoco? Tem que levar um sacode para abrir os olhos.

Ah, que conversa de surdos-mudos! Discussão de futebol e política! Quem sai ganhando? O observador, que não tomou partido. Quem perde? Os interlocutores, uns mais exaltados que outros. A vida prossegue, eles ficam para trás com suas opiniões.

O árbitro desse jogo cheio de tramoias e peripécias ilícitas – felizmente dentro das quatro linhas, como costumam dizer comentaristas de futebol no Rádio, TV e sites especializados –  é o ministro do STF que havia sido designado para o sacrifício. Recebeu informações de um bandeirinha (a Polícia Federal), indiciou os apontados e, craque nas jogadas desse tipo, pediu a opinião do VAR, a Procuradoria Geral da República (PGR).

Enquanto avança a questão constitucional/policial, o governo constituído divulga, pela palavra de um seu ministro, providências que objetivam facilitar o desempenho do Executivo sem prejuízo da população, ainda que com risco de, ao final dos prazos estabelecidos, o planejamento dê com os burros n’água. Nem bem secou a tinta da publicação da fala do ministro (agora é virtual, não se usa tinta) e já o presidente da República muda tudo, reduzindo de cerca de R$ 6 bilhões para R$ 4,3 bilhões o bloqueio adicional nas despesas do Orçamento de 2024, invalidando a redução antes anunciada. Vem à memória corriqueira exclamação das vovós: “durma-se com um barulho desses”.

A Razão vai aos arquivos históricos e rememora uma sentença clássica de quem não quer envolver-se: “nem contra nem a favor; muito pelo contrário”. Já diziam nossos avós: “eles que são brancos que se entendam”. Na maioria das ocasiões nossos avós eram sábios.

O PGR já iniciou a análise dos documentos elaborados pela Polícia Federal e encaminhados pelo STF. Após essa análise, utilizando as linhas mortíferas aplicadas pelo VAR, poderá acusar formalmente os indiciados, dando início ao processo para julgamento de cada um deles. Isto levará muito tempo, mas certamente estará definido em 2025.

Brasil é, realmente, o país do futebol (com licença da expressão ‘país do carnaval’), onde até notícia sobre tentativa de golpe de estado pode ser tratada como narração de pelada de bolapé. Então, termina o primeiro tempo. No próximo devem repetir-se, de um lado, jogadas violentas, maldosas; do outro, as defesas da lei, do bom senso e da razão. Esse jogo não terá interrupções drásticas nem apito final, e a bola adormecerá na marca do pênalti neste solo de que somos filhos e da mãe gentil de rimas mil.