A grande lição de Constantinopla

Chamou-se Bizâncio, depois Constantinopla e hoje é Istambul. Foi grega e cristã, hoje é turca e muçulmana. Pelos meados do século XV, era uma cidade tranquila e feliz, rica e cobiçada pelo seu vizinho turco, do outro lado do Bósforo. As altas torres da Basílica de Santa Sofia eram um desafio ao Islã, que via nelas magníficos suportes para o simbólico Crescentes. Logo que assumiu o trono, o sultão Maomé II começou a pôr em prática os planos de agressão que principiara a traçar, ainda adolescente. Ele fazia questão da glória de trazer Constantinopla para a sua coroa, pois era moço e ardoroso e tinha fome e sede de poder.

Pacientemente, fechou o cerco sobre a cidade, preparou poderosos exércitos e fez a Constantinopla tantas incursões de espionagem quantas lhe aprouve fazer. Seus propósitos de invasão estariam claros, evidentes, para quem tivesse um mínimo de visão, mas os gregos estavam cegos pela sua própria opulência, pela suposta predestinação a uma grandeza infinita, pela ilimitada proteção da virgem de Blachernae e, enquanto o turco e seus generais se debruçavam sobre o mapa da cidade, estudando-o em seus mínimos detalhes, em Constantinopla ria-se, folgava-se e procedia-se às célebres discussões sobre o sexo dos anjos e a união dos ritos grego e latino. O imperador Constantino movia-se, indeciso entre dois partidos, receando ser chamado de apóstata se optasse pela submissão ao Papa romano, cujo auxílio não houve remédio senão pedir, quando se tornou evidente o ataque dos turcos. Mesmo assim, faltaram os que protestaram, convencidos, até o último momento, de que Constantinopla era inexpugnável e estava sob a proteção da Virgem. Só se convenceram do contrário, quando os soldados turcos entraram a cavalo em Santa Sofia, destruíram todas as preciosas imagens e o sultão berrou que havia caído Cristo em favor de Maomé. Assim também ficaram caídos junto às muralhas da cidade tida como invencível os que ingenuamente haviam desdenhado o poder do inimigo forte e ambicioso. 

A queda de Constantinopla assinalou, para o mundo, o fim da Idade Antiga e o início da Idade Moderna.

Parece que nos defrontamos, hoje, com o limite de outra idade. A nossa civilização vive como uma bela, rica e despreocupada Constantinopla, indiferente aos inimigos, que a espreitam. Brigam as nações ditas democráticas para decidir quem é a campeã da democracia, quem assegura ao indivíduo maiores garantias e liberdades, enquanto o comunismo, que não dá qualquer garantia nem liberdade, abocanha mais um pedaço de terra. Briga-se para ver quem tem um estoque maior de armas atômicas, e com isso a radiação está matando os oceanos. Constrói-se, com orgulho, cidades cada vez maiores, e a poluição ameaça liquidar a frágil atmosfera. Vemos, triunfantemente, magníficos tratores abatendo as últimas florestas do Globo, assim se extinguindo as fontes de oxigênio que respiramos. Fascinamo-nos com os progressos industriais de uma sociedade de consumo e desperdício e, nem percebemos, dia a dia, esgotarem-se os recursos minerais do planeta. Assistimos, maravilhados, ao lançamento de gigantescos petroleiros e não damos caso à destruição tremenda que um acidente com um desses petroleiros ocasiona no mar, matando uma multidão de peixes e outros organismos que amanhã farão falta à alimentação humana. Construímos altos edifícios e acomodamos seres humanos em prateleiras, como se fossem produtos rotulados de uma fábrica, achamos que isso facilita o trabalho de limpeza e conservação, e assim criamos neuróticos em massa, porque ignoramos que o homem é um produto da terra e liberdade não significa apenas poder ir à vontade tomar cachaça ou Coca-Cola no boteco embaixo do apartamento.

Produzimos música eletrônica que alcança volumes de som nunca vistos, graças ao progresso de técnicas inteiramente novas, e sorrimos, com displicência, quando levamos a notícia (que nos devia apavorar) de que entre os adolescentes habituados a esse tipo de música e ao ruido das cidades os laboratórios constatam uma alarmante diminuição da capacidade auditiva; enquanto um índio, habituado ao silêncio da floresta, ouve um avião que se aproxima, cinco minutos antes do que qualquer um de nós, civilizados, possa fazê-lo. Desmatamos e deixamos secar as nascentes de água, transformamos os rios em canais de esgoto, acabamos com os peixes (salvo uma ou outra espécie que, como algumas pessoas, acomoda-se a viver na lama e na imundície), e deixamos as populações ribeirinhas, iludidas pelo progresso e a industrialização, entregues às doenças que esse rio-esgoto transmite, e sem o recurso de um peixinho para o jantar. Queimamos e ferimos o solo, matamos a sua abençoada fertilidade, terminamos com toda a fauna, acabamos com as borboletas e os passarinhos, e depois de matarmos toda a vida no planeta, depois de tratarmos a natureza que é mãe, como se fosse uma inimiga, seremos nós a morrer, vítimas da ambição e da estupidez, nós, o gênero humano, a única espécie dotada de inteligência e raciocínio.

Isso porque, durante a sua longa história, a humanidade gasta as suas melhores forças em discussões inúteis, em ações egoístas. Num país ou numa cidade, a maioria das pessoas que participa ativamente no governo ou na administração desperdiça em política e intrigas a maior parte do tempo que devia empregar no bem da comunidade e no estudo dos seus problemas. Como os gregos em Constantinopla, perdem-se tempo com o supérfluo, e não se atende ao necessário. Fia-se o mundo em estéreis considerações sobre palavras como “diálogo”, “progresso”, “industrialização”, como outrora se fiaram os gregos na Virgem, e destruíram-se, entre si, antes mesmo que os turcos os destruíssem.

A história se repete sempre e sempre. Era preciso que as lições fossem aproveitadas, mas não são, desgraçadamente, não são.

Publicado em 20 de setembro de 1975