História do racionalismo – 137
“O século XVIII”, afirmou Kant, “é, particularmente, o século da crítica. A religião, alegando sua ‘santidade’, e a legislação, invocando sua ‘majestade’, querem dela escapar; mas então excitam contra elas próprias justas reservas e não podem pretender merecer essa estima sincera que a razão oferece somente àquilo que pode suportar exame livre e público.”
Numa de suas últimas obras, A Religião Dentro dos Limites da Razão Pura, publicada por Kant aos 70 anos de idade, o grande pensador submeteu a exame as questões metafísicas. Os resultados desse exame foram considerados hostis à religião por demonstrarem a falsidade dos conceitos teológicos da cristandade, contrastantes com a pureza e a simplicidade dos verdadeiros princípios defendidos por Cristo.
Diante de certas passagens dessa obra, dir-se-ia que o leitor se depara com o próprio racionalismo de Voltaire ou com as vigorosas cutiladas de Luiz de Mattos desfechadas contra erros, mentiras e preconceitos religiosos.
Severa bordoada. É ainda nessa obra que Kant aplica severa bordoada, agora no clericalismo e em seu sistema de rituais, cerimônias, exterioridades e aparatos, que contrastam também com a pureza e a simplicidade dos reais ensinamentos crísticos.
Ao se expressar assim sobre tais práticas do clericalismo cristão, Kant nos faz pensar nas palavras do escritor francês Ernesto Renan, que, em sua famosa Vida de Jesus, afirma que “foi pelo atrativo de ser uma doutrina despojada de formas exteriores que o verdadeiro cristianismo de Cristo seduziu as almas elevadas”.
Frederico, o Grande, e seu sucessor, o intolerante. Parte considerável da vida de Kant transcorreu sob o reinado do esclarecido e progressista soberano alemão Frederico, o Grande (1712–1786), adepto do Iluminismo Francês, além de protetor e amigo de Voltaire.
Porém com a morte do ínclito monarca ascendeu ao trono o retrógrado e reacionário Frederico Guilherme II (1744-1797).
Contrário à política liberal de seu ilustre antecessor e influenciado pelo clero, esse rei, despido da necessária dignidade régia e cristã, teve seu reinado marcado por perseguição, intolerância e obscurantismo religiosos. Isso em pleno Século das Luzes.
‘Último mártir da filosofia’. Kant, então já em idade avançada, de físico débil e saúde melindrosa, passou a ser alvo de pressões e humilhações por parte do setor de censura desse rei. Passou até mesmo a ser ameaçado de prisão e de perder seu cargo na universidade.
Além disso, impedido por Frederico Guilherme II de dar publicidade a suas opiniões discordantes da teologia católica, Kant só pôde publicar esses escritos depois da morte esse inimigo da liberdade de expressão em 1797.
Canto do cisne. Foi também nesse ano que Kant escreveu sua última obra, A metafísica dos costumes, seu “canto do cisne”. A essa altura, restavam ao prolífico filósofo sete anos de vida. Mas já cumprira sua grande e histórica missão filosófico-criticista. Noutras palavras, já realizara sua obra, considerada monumental, na qual convergem as tendências das duas maiores escolas filosóficas da Idade Moderna, o empirismo e o racionalismo.
Como já foi dito no artigo inicial deste capítulo sobre Immanuel Kant, ele orçava pelos 80 anos quando faleceu, em 1804.