Mergulho na incerteza

O Relatório de Riscos 2025 (Foro Econômico Mundial) projeta para o curto prazo até 2027 uma economia de cabeça para baixo, desastres climáticos extremos com colapso de ecossistemas, crescente espionagem cibernética e, de mal a pior, a informação. Ou melhor, a desinformação e a falsa informação. Os fluxos, a partir dos procurados conteúdos online, serão cada vez mais difíceis de detectar e remover e, com o advento da Inteligência Artificial, AI, absolutamente fora de controle. Vídeo, foto, imagem, voz, texto podem proliferar adulterados, nem sempre mal intencionados. Disponíveis por quem quer que seja (empresas e políticos, por exemplo), haverá meios de provocar erro, dúvida, desconfiança, denegrir a imagem de pessoas, produtos e serviços, criar conflito e problemas. Todos estarão vulneráveis: setor público e privado, sociedade civil, organismos internacionais, Academia.

Ainda nem bem despontara o século XXI e o autointitulado pensador independente Jean Beaudrillard referia-se à incerteza do mundo, imerso na “fatalidade da troca impossível” (A troca impossível, Nova Fronteira, 2002). Segundo o princípio da incerteza, é impossível “avaliar ao mesmo tempo a realidade e a significação do acontecimento na informação e de distinguir as causas e os efeitos em tal processo complexo”. Mais: “… a realidade, indiferente a toda verdade, zomba loucamente do conhecimento que se pode depreender de sua observação e de sua análise”.  Seu livro A guerra no Golfo não aconteceu mostrou-se um exemplo – acontecimento produzido. O que é de fato real? O que se deve avançar ou subtrair para que o acontecimento ocorra ou não? O que não pode acontecer, por probabilidade nula, às vezes deve ou pode acontecer? “O mundo não está em crise, mas em um processo catastrófico – desregramento de todas as regras do jogo”.

O segredo e a informação. Na puxada do fio Beaudrillard, voltei-me à minha desordenada estante de mídia. Lá estava O segredo e a informação (Editora Brasiliense, 1986), em que João Almino trata a questão em dois longos ensaios, incluindo conceitos de abordagem filosófica. Já na Introdução, registra: “A Verdade, em maiúscula, existe apenas como fruto de um consenso que brota de uma argumentação coletiva, ou seja, razões locais e temporais conflitantes disputam ou compõem no espaço público a verdade. E o tempo às vezes transforma as verdades mais estabelecidas em puras mentiras”. A mentira seria uma falsificação consciente, uma falsificação da verdade de fato. Assim sendo, como forma de resguardar o Estado, seria permitido guardar segredo. E também mentir. Segredo e mentira, quando conscientemente elaborados, suportados pelo Estado, teriam como antídoto a não-censura, a liberdade de opinião. “Do ponto de vista da democracia, não deveria haver lugar para o segredo e a mentira na esfera pública (embora saibamos que esse ideal inexiste em quaisquer das atuais democracias)”, lamenta o autor.

 Informação e poder nutrem íntima relação, constata Almino. “Nunca esteve tão claro quanto na atualidade a relação direta entre acúmulo de informação e exercício do poder. A disputa pelo poder passou a ser também uma disputa por informação… Basta verificar o papel que cada uma delas atribui a seus órgãos de informação. Ou o uso crescente dos mais sofisticados aparelhos de detecção de informações, dos quais o exemplo mais atual são os satélites espiões”. E como a mensagem depende da relação entre emissor (a intenção) e receptor (a compreensão), “as estratégias de ocultamento e revelação de informação têm a ver com a cisão da sociedade interna e internacional, com a questão da sobrevivência (crise) e do conflito (guerra) e revoluções atuais ou potenciais, reais ou imaginárias”.

Diferentes faces do mesmo problema, dentre as menções filosóficas no livro – aqui num sopro –, temos Nietzsche como ponto de partida. Pressupõe ele que a verdade “são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moeda”. De Hannah Arendt, em La Crise de La Culture (Gallimard, 1972), a contraposição da verdade racional e da verdade de fato. Indaga: “Mas existe algum fato que seja independente da opinião e da interpretação”? Responde: os fatos são extraídos de acontecimentos e depois arranjados “em uma história que não pode ser contada senão numa certa perspectiva”. Para Kant, a veracidade é um dever absoluto, em quaisquer circunstâncias, e toda mentira uma declaração intencionalmente falsa. Como tal, sempre implicará responsabilidade para o agente.

Estratégia hitlerista. No Tomo V de sua Teoria da Comunicação III, Ciro Marcondes Filho lembra: “O grande evento que marcou a virada dos tempos foi a estratégia hitlerista – sob forte influência de Goebbels – de recombinar todos os campos da atividade política, social, ideológica e cultural, num programa unitário de mobilização popular pela emoção”. Estamos agora na virada para outros tempos, uma transição de “pós-verdade”, um feliz termo cunhado pelo neuro-cientista Miguel Nicolelis. 

Ano de muitas emoções este 2025. Surto de indagações. Muitos agentes, muitas vozes, muita inconsistência a despertar os “cisnes negros” – eventos inesperados – do autor libanês Nassim Taleb. O Norte abre guerra sem disfarce ao Sul Global, que tenta afirmar-se pela unidade na diversidade. Um montão de encontros, reuniões, cúpulas, declarações. A pleno vapor a “diplomacia do microfone” do presidente brasileiro Lula, na irreverência afetiva do presidente venezuelano Maduro. Destaque para a Cúpula da Celac, em Honduras, o 4º. Encontro Ministerial do Foro China-Celac em Pequim, bem como a cúpula do Brics, no Brasil, julho próximo. E comemorações do 8 de maio em Moscou, enfunadas por chefes de Estado ou Governo. O jogo de influência revigora-se com o unilateralismo do governo americano. O Sul Global aposta na mensagem de solidariedade. Fechará o ano outro destaque de muito ruído, a Cop 30.

A verdade de cada um, em escala planetária, vai forjando muitas realidades a degustar. Será intencional ou consciente a propagação do imaginário. No ambiente complexo da informação, é quase impossível detectar se o fato aconteceu, ou foi fabricado no computador, ou se é fantasia mental divulgada pelas mídias sociais personificadas. Em 2026 chegaremos talvez ao delírio. Há dois ímãs: eleições presidenciais no Brasil e eleições de meio mandato nos Estados Unidos. Projeções desse delírio estendem-se a 2027: manipulação de voto e fatos em zonas de conflito, em dados de todo gênero, provocações espirrando estigma, dúvida e difamação, abuso da caça às bruxas.

Tomara que nos enganemos, seja tudo um exagero de desinformação.