O legado do Ocidente

Repeteco do tema, mas é a briga do dia: Norte Global versus Sul Global, trilhões x tostões, 49 países liderados pelos Estados Unidos x 145 países diversificados em busca de soberania, desenvolvimento, paz e segurança. Pesquisa de acadêmicos e ativistas socialistas, divulgada em janeiro 2024, Sul Global Insights [www.otricontinental.org] expõe o “novo estágio decadente e perigoso” do hiperimperialismo ocidental, que evolui desde final do século XVIII, então sob o Reino Unido. A partir de fins da segunda guerra mundial, passa ao domínio evidente dos Estados Unidos, que se afirma em 1945. E evolui com conquistas, racismo, genocídio. Hoje, essa hegemonia global integra cultura, informação, entretenimento, organizações não governamentais, academia e think tanks. As vozes de um ouvidas por todos.

Formadores do Ocidente. Afinal, o que é o Ocidente? Qual é o seu destino? “O Ocidente, historicamente, é o produto do interrelacionamento, conflitante e cooperativo, de três principais povos: latinos, germânicos e anglo-saxões, com uma contribuição menos central, mas relevante, de eslavos e nórdicos”. Sucinta introdução ao assunto, do autor Helio Jaguaribe, já em 2002 partindo da visão básica do mundo ocidental de concepção religiosa para o mundo de agora, de concepção científico-tecnológica. São cinco gerações de tecnologia – desde o rádio, telefone e cinema –, que, comercializadas, se transformaram em “armas” políticas a serviço da conveniência. Salto em quantidade e qualidade. As empresas americanas controlam a maior parte e, para conter o avanço da China no setor, partiram para uma guerra fria de “missão histórica”, qual a de subordinar a Eurásia. A China, hoje o maior desafio econômico e político à hegemonia do Norte Global, continua a declarar, publicamente, o compromisso de reduzir a desigualdade entre Norte e Sul. A desigualdade talvez seja o único ponto comum a esses 145 países tão diversos.

 “O cristianismo constitui, sem dúvida, um elemento central da cultura ocidental… Mas tem raízes greco-romanas e também ocorre com Bizâncio e suas legatárias, a Rússia e as culturas eslavas”. Segundo Helio Jaguaribe, o processo de evolução histórica do legado romano cristão tem momento decisivo “quando o papado transferiu seu respaldo político-militar do Império Bizantino para o nascente Império Carolíngeo. A coroação de Carlos Magno por Leão III em 800 d.C. marca esse momento decisivo. A partir daí pode-se distinguir a evolução de uma sociedade romano-cristã ocidental de sua congênere oriental”. E agora, o que significaria a ascensão de um papa norte-americano, Leão XIV (com um presidente ultranacionalista nos Estados Unidos), após o progressista Francisco? O mundo não é mais o mesmo.

 E a nova ordem? Em abril 2025 , o Clube de Debate Valdai divulgou um paper com expressiva visão geral para entender os principais processos e fenômenos do mundo contemporâneo e de como poderá ser a nova ordem. Uma alternativa de integração (imprescindível para a redistribuição de poder e recursos), afastada da lógica binária conflitante, do círculo vicioso de confronto. O agora da moderna geopolítica implica adotar abordagens ao regionalismo, com base nas prioridades de cada país. Processo prolongado, talvez de décadas.

O Sul Global entra no fogo cruzado da rivalidade dos “grandes”, pressões políticas de sanções, protecionismo e instituições internacionais exigindo reformas conforme a realidade polifônica, a voz dos “outros”. O melhor a esperar, a médio prazo: concorrência controlada, instabilidade sustentável. O emergir do grupo Brics (ora Brics Mais) é considerado um dos fatos mais relevantes do início deste século, como desafio ao Ocidente e seu legado de desigualdade. Finca os alicerces de uma futura (já presente?) polifonia capaz do diálogo para solucionar desacordos.

São opções do Sul Global: a via do multilateralismo, com modernização, desdolarização, inovação, soberania alimentar e digital, solução de dívidas, justiça ambiental. Cada um dos 145 tem ideologias e agendas políticas distintas. Todos sob pressão da superexpansão imperialista, que agrega repressão interna nos Estados Unidos, haja vista – só para dar um exemplo – os protestos no país contra a política imigratória e a guerra em Gaza. Rússia e Irã dominam entre os países “em forte busca de soberania”, num grupo sob sanções dos Estados Unidos, que vem crescendo. O grupo do Brics ganha força, com PIB significativo em relação à economia mundial e diretrizes econômicas independentes, apesar de alguns comportamentos contraditórios no cenário internacional.

Brasil lidera. Em conjunto, a parcela do Sul Global na economia mundial aumentou de 40% para 60%. No elo nominado “progressista” pela pesquisa, o Brasil lidera. Preocupação essencial: mudança de regime, combate aos interesses vigentes. Quanto ao Norte Global, seis dos 49 países –Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália, Israel e Nova Zelândia – representam o anel anglo-americano de colonizadores de ocupação branca, supremacia branca e fanatismo religioso. Israel, criação do movimento sionista, arcaria com o ônus de proteção contra o Oriente e, por extensão, contra a nova rota da seda chinesa. Mas há muitas incógnitas no caminho.

É precisamente nessa região que se projetam, décadas a fio, as guerras santas sob alcunha de “combate ao terrorismo”. Têm, nos bastidores, quatro presidentes americanos de relevância notória: Ronald Reagan, George H. W. Bush, Bill Clinton e George W. Bush. O Afeganistão passa por aí, invadido que foi tanto pela União Soviética quanto pelos Estados Unidos. Algumas datas longínquas evocam fatos do presente. Por exemplo, os distúrbios de 1921 entre o nascente nacionalismo árabe e o sionismo. Inclui-se, no atroz legado de guerras, o sacrifício das lutas de resistência – como viver em cavernas nas montanhas (Afeganistão) ou em túneis (Vietnã, Gaza), ou ainda prática da pseudo pirataria em alto mar (os houthis no Golfo). Mais de 20 anos. No pacote, o que até hoje se lamenta como erro desmedido: a guerra contra o Iraque.  

O princípio da guerra justa é a “invenção preciosa dos cruzados”, diz o autor Michel Onfray em Décadence, segundo livro da trilogia Breve Enciclopédia do Mundo. “De Constantino a George Bush o sangue corre em nome de Deus… O Deus de Abraão, o de Cristo e o de Maomé fazem a guerra há mais de mil anos. De Washington a Jerusalém estamos sempre ali”. As cruzadas sucederam-se por séculos. Combate aos muçulmanos. A Inquisição combate a heresia, dos séculos XII ao XV. Governo pelo terror e os processos públicos reprimem a oposição. O Islã também é conquistador, dos tempos mesmo de Maomé. Hoje, glorifica-se com o Estado Islâmico. “As civilizações são mortais. A nossa judaico-cristã envelheceu de dois mil anos. Não escapa a essa lei.”

 Explorando politicamente o fato de que o Ocidente está afundando, Onfray lança mais uma reflexão: a potência tem por vocação entrar em decadência, como a vida a vocação de desembocar, um dia, na morte.