A bela e a fera

Na expectativa de 2025 tornar-se o ano das surpresas tecnológicas, os analistas esmeram-se nos detalhes da “amostra” DeepSeek. Tudo leva a crer que haverá avanços maiores. Em theconversation.com, Jordi Linares Pellicer, da Universitat Politècnica de València, diz que a China abriu a caixa de Pandora: o código e suas técnicas, permitindo a réplica e o aperfeiçoamento, acelerando a inovação, habilitando o raciocínio e ampliando o campo a outros setores. Há expectativas de uma segunda “façanha” prestes a explodir, da gigante chinesa do e-commerce, Alibaba, em vias de aclamar um novo modelo de IA, superior ao que entrou no mercado pela via de uma simples startup. No debate, surge a ideia de agregar modelos e fontes, o que chamam “ensembling” (conjugar, reunir), com melhores resultados, mas riscos piores à privacidade e segurança.

Uma década mais e a China, tal como a apresenta o 14º Plano Quinquenal (2024-2035), despontará moderna, uma economia socialista de mercado, totalmente digital e interligada.

“Tudo que puder ser automatizado assim será”. É o tripé do ciberespaço, computação quântica, inteligência artificial. Desenvolvimento voltado ao homem e à natureza. O verde, flores, paz de espírito. Prosperidade, governança, segurança. Meta: o PNB per capita atingir o nível dos países moderadamente desenvolvidos. Inovação, o motto. Participação igual e desenvolvimento igual.

Civilização social – uma utopia no planeta Terra? Na esteira da IA, estão agentes prestes a decolar, segundo o White Paper do Fórum Econômico Mundial, dezembro 2024. São nada menos que assistentes inteligentes, com poder decisório para solucionar o que der e vier. Uma combinação da IA com a robótica.

Para esta década, informa o Global Times de 1 de janeiro, a China reacende a política das Três Iniciativas Globais: Desenvolvimento, Segurança, Civilização. Definida com ênfase no multilateralismo, aprofunda-se no mundo real, em vez do abstrato debate ideológico da democracia versus autoritarismo. Que agora parece “invertido” pelas ordens executivas do presidente Trump. Assemelha-se mais a ‘democracia autoritária versus autoritarismo democrático’. Pretendendo uma certa “estabilização” no cenário de segurança, até para favorecer a Iniciativa Cinturão e Rota, a China aposta num financiamento agressivo, cobrindo áreas prioritárias: ciberespaço, computação quântica, inteligência artificial. O Grande Fundo 3.0 (Fundo de Investimento Nacional do Circuito Integrado da Indústria) reúne investimento estatal e privado e de instituições financeiras e bancárias. Com prazo estendido até maio 2039, reflete a natureza de longo prazo da indústria de semicondutores e o afã de autossuficiência. Dois órgãos terão de dar conta do recado: a Comissão Central de Assuntos Ciberespaciais e a Comissão Central de Ciência e Tecnologia. Ambas sob o Comitê Central do PC, são a resposta do governo a desmandos de corrupção, infelizes escolhas de investimento e tarifas norte-americanas às exportações de chips. Objetivo: chegar à fusão das inteligências humana e artificial. No plano espacial, a ambição é colocar em órbita, até 2035, uma próxima geração de satélites de monitoramento do sistema BaiDou, e a Estação Internacional de Pesquisa Lunar. Desta, participam dez países e umas 30 organizações internacionais. Também avançam as pesquisas do sistema solar, a começar por seu primeiro planeta, Vênus – a deusa da Beleza. Em contraste com os Estados Unidos, que preferem Marte – o deus da Guerra.

Decididamente, a China almeja a liderança tecnológica e romper a dinâmica do mercado de semicondutores. Experts como o professor Sun Ninghui [thediplomat.com] chamam atenção para o dualismo da tecnologia – avanços notáveis, com benefícios desmedidos para a sociedade, mas também riscos de segurança, devido à desinformação e deturpação, e conteúdo politicamente suscetível do que quer que seja. Estará declarada a concorrência?

Em 21 de janeiro – ainda sem DeepSeek no mercado –, o presidente Trump anunciou o projeto Stargate (o trio OpenAI, SoftBank e Oracle) e financiamento de US$ 100 bilhões para a IA generativa. Foco primeiro: a segurança dos Estados Unidos e aliados. IA militar?

A postura do Pentágono, de bloqueio da DeepSeek, radicaliza a questão. Há senões: a Nvidia, das tech americanas a que levou o maior baque nas ações, analisa a DeepSeek como “um modelo aberto com capacidade de raciocínio ímpar”, que oferece um processo de condução da cadeia de pensamento até a melhor resposta. Zhu Rongsheng (Centro Internacional para a Segurança e Estratégia da Universidade Tsinghua) vê, nesse contexto, um cenário de “politização tecnológica”.

A Pax Americana faz-se por meios coercitivos e invasivos. O presidente Trump ameaça “tomar” a Groenlândia, Canadá, Panamá, Gaza; “arder” o meio ambiente (drill, baby, drill); “prender” imigrantes; “deportar” estudantes; “abandonar” organismos e instituições internacionais de ajuda externa; “cercear” a Justiça mundo afora. Impõe tarifas arbitrárias no comércio exterior e turismo. Haja vista a Cuba “terrorista”, um erro de má fé e desconhecimento histórico. O autor americano Ben Tarnoff contesta, mais que tudo, a política ambiental. “Nosso cenário civilizacional não melhorou. Não são apenas incêndios, inundações, zoonoses e outras insígnias da emergência ecológica. É também o aniquilador espetáculo de uma classe na liderança tão extravagantemente despreparada para a tarefa”. (NY Review of Books). “Caos americano” é como o descreve The Lancet em editorial (janeiro 2025, volume 405), citando o desumano fim da ajuda financeira a organizações de saúde e assistência médica, congelamento de doações e empréstimos a instituições de pesquisa biomédica. Fora o atropelo da censura a websites e jornais científicos. Contudo, tem fé em que seja um teste para os Estados Unidos, com respostas legais a seu tempo.

A Pax Chinesa prega a coexistência harmoniosa. Retrocede aos ensinamentos de Confúcio: o caminho do meio define uma atitude conforme a natureza – de equilíbrio, uma escolha entre ação e paixão. Neste Ano da Serpente, que simboliza a sabedoria e a vitalidade, a milenar Cultura Hehe ressoa fortemente no Sul Global, mas não, claro, no Deep State Anglo-Americano de 150 anos de guerras coloniais. Laurent Michelon, ex-diplomata, autor de Compreendendo a Relação entre a China e o Ocidente, explica que o primeiro ‘he’ envolve harmonia, paz e equilíbrio; atende a mente individual e coletiva. O segundo ‘he’ fala de convergência, unidade e cooperação.

Eis aí o conceito universal, pelas lentes contemporâneas. Uma escolha de valores, portanto, não de blocos.