A ciência dos gregos antigos e seu pouco espírito prático

O mundo grego antigo, o das cidades-Estados, ou pólis, – que se encerraria com o avanço do Império Macedônio, de Alexandre, o Grande – desprezava o trabalho manual ou qualquer “atividade técnica”, que eram relegados aos escravos.    

Sabe-se que nem mesmo no Período Clássico da civilização grega (séculos VI, V e IV a.C.) – quando a cultura helênica fundaria o racionalismo ocidental ao inventar a filosofia e, com ela, alguma noção de ciência – se dignariam os gregos preocupar-se em aplicar seus conhecimentos às tarefas práticas. A não ser quando se tratava das que diziam respeito à moral e à política.  Segundo o historiador da filosofia José María Valverde, a matemática dos pitagóricos e de Platão esgota-se nela mesma ou é apenas o modelo para outras ciências. “E Aristóteles, apesar de valorizar a observação, não extrairia dela o método experimental”.   

Pelo menos a medicina. Todavia, graças a Hipócrates (c.460-c.380 a.C.), também figura de realce do racionalismo grego, ao lado de Sócrates, Platão e Aristóteles, seus contemporâneos, pelo menos a ciência médica conseguiria desenvolver-se “num mundo tão avesso ao uso prático do conhecimento”.

Médico e cientista, além de membro dos Asclepíades, uma espécie de irmandade de médicos, coube a Hipócrates, durante cerca de 19 anos, entre 454 e 435 a.C, levar a cabo uma série de trabalhos em prol do desenvolvimento da medicina, entre os quais o de expurgar da prática médica o caráter “sobrenatural” e místico, tornando-a “uma ciência baseada na observação e na experimentação”.

Contrariando crendice, então em voga, de que doenças eram punições dos deuses, o mestre apontava como fatores da maioria delas os problemas climáticos, alimentares e certos hábitos cotidianos. E afirmava que, uma vez lançadas as bases para uma abordagem racional da medicina, perdiam espaço para o racionalismo da ciência as explicações supersticiosas, míticas e místicas para os problemas de saúde.

Pais da História. De acordo com Valverde, motivação de cunho racional semelhante à que animou Hipócrates a se entregar ao trabalho de desenvolvimento da ciência médica também animaria Heródoto (c. 484-420 a.C.) e Tucídides (c. 465-395 a.C.), que viriam a ser agraciados com o título de Pais da História.   

Heródoto descreveria em Histórias, obra dividida em nove volumes, as guerras dos gregos com os persas (século V a.C., de 499 a 449). Por sua vez, narraria Tucídides, em sua História da Guerra do Peloponeso, livro composto de oito volumes, o conflito armado entre as cidades de Atenas e Esparta (século V a.C., de 431 a 404).

Apesar das diferenças. Observa-se, porém, na obra de Heródoto, um método ainda inseguro, segundo Valverde. “O autor baseia-se em observadores diretos e indiretos dessas guerras, faltando-lhe, pois, critérios para separar o acontecido do imaginado.”

No livro de Tucídides, também de acordo com o estudioso, o método é mais preciso. “É uma obra fruto da observação direta e pessoal dos acontecimentos, cotejada criteriosamente com outros relatos”.

Apesar de tais diferenças, Heródoto e Tucídides concordam que “a História, ao narrar os feitos humanos, eterniza e imortaliza o homem para além das futilidades da vida”, pois, afirmam ambos, a História não é, como dirá depois Aristóteles, “a narração do que ocorre ao acaso”, e sim de acontecimentos necessários e tornados necessários graças à ação e à intervenção dos homens.

Voltando a Hipócrates, cabe ainda observar que, ao contrário da História, que tem dois pais, a medicina tem apenas um. A própria História reconhece ser Hipócrates, inegavelmente, o grande pioneiro da medicina no Ocidente. Mas aponta como primeiro autor de trabalhos, em benefício também do desenvolvimento da ciência médica, um oriental, cidadão do antigo Egito, chamado Imhotep, que teria morrido por volta de 2.500 anos antes de Hipócrates nascer…