A invenção da realidade

Só se fala em mudança. Assim, o momento favorece o debate do que foi, está sendo, virá. Ganham destaque a tradição e a propaganda, que abastecem causas, em geral políticas e ideológicas, ou causa alguma salvo lucro. Usam malícia, ludibrio, ilusão, clamor, contestação; jogam com pretensas nostalgias de um passado melhor; geram perturbação, confusão, caos. No contemporâneo acelerado, ascende a modernidade do “neo” e do “cíber”. Do primeiro: neotradicionalismo, neoconservadorismo, neofuturismo, neofascismo e similares. Do cíber, mais em voga a segurança, mas também a supercíber civilização e sociedade. O neotradicionalismo insinua que a forma que um regime assume rompe com noções enraizadas e trata instituições, práticas e valores como recursos sujeitos a críticas. Há versões sempre modificadas evocadas como neotradições – que servem como metas políticas.

Os historiadores ingleses Eric Hobsbawm e Terence Ranger descrevem (A invenção das tradições, Paz e Terra, 1997) como a invenção e o desdobramento de “novas tradições” podem contribuir para construir novas identidades, quando há mudanças. Para legitimação política, a “tradição” será usada pelos velhos contra os jovens, pelos homens contra as mulheres. E também manipulada contra os imigrantes. Quantas tradições inventadas já passaram, e passam, pela História? Segundo eles, a invenção aproveita-se das sociedades debilitadas para criar vínculos com as transformações. Usa datas simbólicas (1º de Maio), monumentos públicos (erguidos ou destruídos), esporte como trunfo (futebol e unidade nacional). Tradições inventadas obedecendo à lei da oferta e procura.

Assim também a manipulação – e aqui a segunda guerra mundial tem uma reescrita de tal vulto a ponto de provocar celeuma contra o revisionismo antirrusso. Em editorial no Diplo dezembro 2024, Benoît Bréville refere-se a pesquisas do Instituto Francês de Opinião Pública (FOP) sobre a mesma pergunta – qual país mais contribuiu para a derrota da Alemanha – e os resultados. Em 1945, 57% responderam: a União Soviética. Em 2024, 60% responderam: os Estados Unidos. Propaganda interferindo na memória coletiva: Hollywood e os filmes de guerra, a dissolução da União Soviética e do Partido Comunista Francês, celebrações pomposas do desembarque na Normandia, há 40 anos. Memória que varia conforme relações de forças, interesses do momento. Cabeças feitas, o universo dos entrevistados vai-se distanciando do conhecimento, facilitando outras releituras. A propaganda anti-Moscou, por exemplo, acirrou-se com a guerra na Ucrânia. Foco de praxe: democracia versus autoritarismo. Todo o fundo de cena, a história, as relações, a diplomacia vão por água abaixo.

Na política, o renascimento remendado de antigas culturas, práticas e instituições tem uso em novos contextos políticos e estratégicos. Nesta era de aceleração, é com o neotradicionalismo que se resiste à homogeneização cultural. Nacionalistas xenófobos e fundamentalistas religiosos saúdam um passado pretensamente não corrompido. O conservador representa o sentimento de simpatia pelo passado, forças de permanência na sociedade. O progressista representa o sentimento de glória no futuro, forças de mudança na sociedade. O ambientalista evoca padrões históricos de harmonia com a natureza contra o materialismo da ordem capitalista liberal democrática.

Em suas narrativas, os historiadores tentam perceber e recriar os acontecimentos como os contemporâneos os enxergam no presente. As interpretações diferem. Evocações, metáforas, perfis psicológicos servem à propaganda, independente do fato em si, dependente dos fins a atingir. Releituras favorecem apoio ou rejeição, conflitos de interesse, dilemas de soberania. Na esteira do desastre discursivo, o Brics explode. Há muita propaganda negativa e inverídica quanto ao que se propõe. No Rio, o Brics Policy Center, vinculado ao Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ, abre portas ao esclarecimento. Em dezembro 2024, lançou o Caderno para Entender os Brics [www.bricspolicycenter.org]. Outras fontes incluem: Valdai Club [www.valdaiclub.com], o Novo Banco de Desenvolvimento [www.ndb.int] e sites oficiais dos países do grupo.

Ainda instrumento número um da propaganda, as mídias quase sempre estão às avessas. Mesmo as que combatem notícias falsas pecam por não informar “notícias inoportunas”. Eis aí um grande universo. Desde notícias suscetíveis de frear mobilizações por uma causa, como vacinação, às que desviam atenção de problemas não resolvidos. Pior são as mídias sociais, ímã de apelo aos engasgados em desabafo. Mas “liberdade de expressão” implica “garantia de direitos humanos”. Embora o “achismo” (acho que…) ainda suplante a opinião, que se quer com conhecimento, avaliação, argumentos. Sem isso, relega-se a “não censura” a mentiras repetidas como verdade. Na edição Brasil 10 January 2025 (theconversation.com) há artigos de fontes confiáveis – Ibict, Unesp, Uff e Secretaria de Comunicação da Presidência da República – sobre as mudanças anunciadas pela Meta.

Fica no ar a sensação de que tudo tem um fim político/econômico de controle/poder. É a agenda do Fascista Wannabe, título de livro recente do historiador argentino Federico Finchelstein, autor e professor em Nova York. Ele nasceu ao começar das ditaduras da ‘guerra suja’. Hoje, alerta para o movimento fascista que se alastra pelo mundo, como “uma nova raça política, misto de fascismo e populismo”. Seria o ponto de partida para o fascista wannabe – wan’to be, quero ser – ditador. Deter poder permanente, coroação de uma causa apoiada em vontade, paixão, fé – como Mussolini a definiu. Líderes populistas, eleitos legalmente, usam da mentira, racismo, xenofobia, propaganda, militarização da política. Todavia, os wannabistas ainda relutam em adotar a ditadura como causa. Até quando minar a democracia lhes bastaria? [https://www.ucpress.edu/books/the-wannabe-fascists/]

Para o sociólogo e jornalista Ciro Marcondes Filho, vivemos o século da “civilização ístico-tecnológica” (Superciber, Paulus, 2009). “Como uma fênix pós-industrial, a ideologia do puro, do certo, do exato do patriotismo prático renasce, lúcida e fulgurante, na era tecnológica… Temos uma nova geração do futurismo. Naquela época, o endeusamento da técnica fechou com o fascismo mussolinista. Hoje, o neofuturismo das telas fecha com o tecnofascismo do virtual”. Teorias conservadoras caem por terra. Leis da termodinâmica ditam a rreversibilidade. Não podemos mover as rédeas da história para trás e reencontrar o mundo do passado. É mister usar a capacidade de dar respostas a novas situações. O cibermundo já está aí.

Enfim, a realidade existe? Parece que sim, com um quê de hipotético, espúrio. Perplexos, muitas vezes nos custa distinguir mentira e verdade.