A revolução filosófica de Baruch Espinosa – I

Nascido em Amsterdã e criado na comunidade luso-judaica dessa cidade holandesa, o filósofo Baruch Espinosa (1632-1677) era filho de pais judeus que fugiram da inquisição portuguesa em busca de refúgio na então denominada “Holanda”, país que, a partir de janeiro de 2020, passou a designar-se Países Baixos (em holandês, Netherlands).

Espinosa foi o primeiro cidadão de origem judaica a se destacar como um dos maiores representantes do pensamento filosófico europeu. Entrincheirado em suas convicções de natureza filosófica, produziu uma “revolucionária formulação sistemática da filosofia”.

De acordo com um estudioso especializado em Espinosa, são as seguintes as principais características da filosofia desse pensador:         

1. O racionalismo absoluto, isto é, o combate de Espinosa à superstição, que, segundo ele, faz surgir uma religião em que “Deus” é um ser colérico ao qual se deve prestar culto para que seja sempre benéfico. A superstição origina também intermediários e intérpretes da vontade de “Deus”, que oficiam cultos, profetizam eventos e pedem proteção ou milagres.

2 – A dessacralização de tudo que as religiões consideram sagrado, místico ou “divino”. O tema faz parte do Tratado teológico-político, obra em que Espinosa defende a liberdade de pensamento e de expressão, e a separação de fé e razão e a de Estado e Igreja.

3 – O naturalismo integral, ou Natureza, com inicial maiúscula. Vale dizer, o que existe em si ou é concebido por si mesmo. Natureza essa tida por Espinosa como natureza ativa, livre, causal ou autocriadora, isto é, natureza simples e indivisível, que significa, precisamente, a substância infinita, ou “Deus”. No entanto, o Deus espinosano não é apenas Força, é também Matéria, pois para Espinosa Deus é a Natureza, ou seja, o próprio Universo.

4 – O determinismo absoluto e metodológico. Para o pensador holandês, nenhuma ação de um ser humano é uma ação isolada. Ela é resultado de ações anteriores praticadas por ele mesmo, e essas ações anteriores, por sua vez, foram resultado de outras ações, o que coloca a pessoa numa espiral que não finda senão com sua morte.

Outro especialista em Espinosa o classifica entre os grandes racionalistas do pensamento seiscentista e o considera a mais importante figura da chamada Idade de Ouro Holandesa.

Um importante entre importantes. A opinião desse estudioso é ratificada por um historiador segundo o qual Espinosa, influenciado ou mesmo inspirado pelas ideias inovadoras de René Descartes, se tornaria um dos filósofos de maior importância do Iluminismo (movimento europeu com fins culturais, políticos, econômicos e sociais que teve início no século XVII e se estendeu ao XVIII).

Para atingir seus fins, os históricos vultos do Iluminismo, entre os quais Espinosa, ”acreditavam na disseminação do conhecimento como forma de enaltecer a razão, em vez do pensamento religioso”.                 

O fato de um intelectual de sua estirpe viver uma vida simples, trabalhando como polidor de lentes para microscópios e telescópios, e de nunca aceitar recompensas nem homenagens intrigava as pessoas, mas causava espécie, especialmente, em gente simples e pobre. 

Recusou até mesmo o convite para lecionar na Universidade de Heidelberg, na Alemanha, oportunidade que propiciaria a Espinosa a folga financeira que o trabalho como polidor de lentes não lhe proporcionava. Mas ele refugaria tão importante e vantajosa oferta para não renunciar à sua liberdade de pensamento.

Excomungado e expulso. Em razão das intensas polêmicas geradas pelas ideias de Espinosa a respeito da autenticidade da Bíblia e contrárias aos ensinamentos judaico-cristãos sobre Deus e demais conceitos de natureza religiosa dessas duas crenças, autoridades da religião israelita emitiram contra ele um herém (o mais alto grau de punição do judaísmo). Ou seja, foi excomungado e expulso, aos 23 anos, da sinagoga (lugar em que os judeus se reúnem para o exercício de seu culto) e repudiado pela sociedade judaica e até pela própria família.

Transcrevemos a seguir o dito herém: “Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch Espinosa. Maldito seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta; maldito seja quando sai, maldito seja quando regressa. Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor nenhum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele.”

E tem mais: posteriormente as obras de Espinosa foram postas no Índex de Livros Proibidos pela Igreja Católica, por serem consideradas heréticas ou contrárias aos ensinamentos do catolicismo. Esse famigerado Índex da Igreja permaneceu em vigor durante quatro séculos.

(Tendo em vista a extensão do capítulo, este artigo encerra-se aqui. O que nos resta dizer a respeito de Espinosa vai ficar para a próxima edição desta folha.)