Arte passeia em vias incertas
São meses a fio de uma mostra complexa e envolvente. Literalmente, o passeio livre das artes e do pensamento. Este ano, estendido a uma segunda cidade, simbólica (e endividada) como Atenas, cruzando as fronteiras do berço, Kassel. Em sua 14ª temporada, a Documenta projeta a singularidade de uma exibição muito além da imaginação, em saudáveis desrespeito e irreverência ao convencional.
Centenas de artistas, escritores, ativistas políticos, acadêmicos, estudantes, cidadãos – aqui entendidos como ‘participantes’ – mesclam-se em oficinas de estudo, debates, grupos de leitura, estúdios abertos, visitas, laboratórios, caminhadas. Com um escopo: refletir, propor, apresentar, representar. Oficialmente, uma exposição universal de artes visuais, que se realiza a cada cinco anos. De ação coletiva, redefine continuamente os instrumentos usados para intervir na realidade e abrir as instituições a todos. “O presente está aqui e agora, e o futuro é nosso para ver e moldar”, assegura Adam Szymczyk, diretor artístico da Documenta.
Apesar da boa participação de artistas latino-americanos (cinco países representados), nenhum brasileiro. Na edição anterior, havia quatro artistas brasileiras, bem conhecidas: Maria Thereza Alves, Renata Lucas, Anna Maria Maiolino e Maria Martins. Esta temporada começou em Atenas, em abril, e ali prolongou-se até 16 de julho, quando chegou a Kassel. O passeio pelas artes – cinema, dança, música, escultura, história, literatura, artes manuais, fotografia, até documentação e outras formas – continua até o dia 17 deste mês de setembro, por mais de 30 vias e locais públicos da cidade. Destaque, inclusive, para as caminhadas livres, que passam pelos pontos de exposições, como o Museu Fridericianum, o Arquivo de Arte dos Séculos XX e XXI, a casa-museu dos Irmãos Grimm e o Mundo de Grimm (Grimmwelt), novo espaço criado na rota de visitas. Ali, uma exposição multifacetada, documental (estudos da língua alemã, mitologia, tradições, leis, literatura) inclui as ‘585 Lendas Alemãs’, de 1816-1818. É a mente científica de Jacob, indissociável da mente literária de Wilhem, na origem de uma tarefa assídua, diligente, inesgotada.
Nascidos em Hanau, hoje Cidade dos Irmãos Grimm, com um ano de diferença (Jacob, em janeiro 1785 e Wilhem, em fevereiro 1786), inseparáveis desde a feliz infância em Steinau, estudos em Marburg e professores em Göttingen, viveram em Berlim suas últimas décadas, ambos membros da Academia de Ciências. Uma vida harmoniosa, que produziu obra conjunta, universal, que Kassel celebra com o Festival dos Irmãos, cada ano dedicado a um dos ‘Contos de Fadas’. Contos que os curadores da Documenta consideram absolutamente dentro da temática atual, de conflitos sociais, tal como quando criados, no século XIX.
Mas o auge, mesmo, aconteceu em 29 de julho: a Longa Noite no Partenon de Livros. Contagem aproximada registra 445 mil visitantes para ver a estrutura de aço e plástico, ao modelo da que já existe em Buenos Aires, nas Avenidas 9 de Julio e Santa Fe, criação de Marta Minujín, para abrigar – e fazer recordar – os livros banidos dos anos de ditadura. Ela apropriou-se do sentido do Partenon de Atenas, como arquétipo político e artístico, e o fez ressurgir em 1983, com os 25 mil livros trancados em depósitos argentinos, até então. Em Kassel, foi uma longa noite de leitura em diferentes idiomas, recitação de textos e ou poemas dos próprios autores, anônimos ou não, e execução de músicas. E uma noite também para ouvir, refletir, pensar. O Partenon lá permanece para prolongá-la, indefinidamente, com seus 100 mil livros, aos que se vão somando doações oriundas de todo o mundo.
Descrever a Documenta é acompanhar o passeio de cada um e de todos. Uma busca desse superávit do saber, que foge à pura aceitação. Está presente em tudo, tantos são os temas da arte contemporânea e tantas as abordagens entre arte e sociedade. Abstrato e concreto, imaginário e realidade, o ontem e o hoje compõem retratos da história, violência e crime, catástrofes e conflitos, tragédias, medos, denúncias, destruição e abandono. Enxergar a partir de pontos de vista diferentes, argumenta Szymczyk; aflorar o subjetivo e o individual.
O filólogo e linguista J. Mattoso Camara Jr. costumava lembrar que o sentimento artístico é espontâneo e inerente nos homens. Na Documenta, uma manifestação única – obras espalhadas por museus, parques, ruas, clubes, espaços públicos e privados, fixos ou temporários, abertos ao debate. Cada canto permitindo uma visão individual, subjetiva da arte de mãos dadas com o homem. Durante cem dias – nesta edição estendidos a 163, para incluir Atenas. O iluminismo dos esclarecidos é generoso, aos nos brindar com esse passeio.
Assim, o ano começou bem. Abril testemunhou arte ainda mais longe, em Abu Dhabi. Uma notória cúpula de cultura que contou, inclusive, com prévia da exposição mundial marcada para 2020: conectando mentes, criando o futuro. Embrionária, esta nova iniciativa destaca empenho em definir o papel da arte/cultura face aos desafios contemporâneos. Produzir mudança social positiva, a mola mestra. Ouvindo a estimulante linguagem artística, entendida por todos. “Façamos arte, não bombas”, como defendeu Mina Cheon, professora de arte no Instituto Maryland, incluída nos 300 convidados de 80 países.
Apesar do mesmo denominador comum – relevância da arte e cultura no mundo atual –, este encontro no centro cultural de Manarat Al Saadiyat, pouco comparável às dimensões da Documenta, resvalou para questões outras como financiamento, conectividade e tecnologia. Mas ambos deixaram, esvoaçando, a indagação fundamental: de que futuro estamos falando?
Clecy Ribeiro
Jornalista, professora das Faculdades Integradas Hélio Alonso, RJ