Cem anos depois

Cem anos depois – o legado
O regime soviético começou em outubro 1917, com a tomada de poder pelos bolcheviques. O que se conhece como a Revolução Russa – para mudar o curso da história e o regime. Mas, da guerra civil que, inevitavelmente, se seguiu, não emergiu a ordem socialista. Assim, essa primeira tentativa de erigir o socialismo logo cedeu, em 1921. E, nos anos 1930 (sob Stalin), o comunismo chegaria o mais perto que pôde da prática do totalitarismo.
Dando saltos na história, chegamos a 1989 e à queda do Muro de Berlim. Já em curso estaria a “segunda revolução russa”, de agosto a dezembro 1991, para muitos apenas um golpe palaciano. Como constata o autor e historiador Martin Malia, em Problems of Communism: “A Revolução Russa de 1991 envolveu mais do que uma mudança de instituições básicas. No cerne da transformação, houve uma mudança de definição do ethos de vida, a saber, o abandono da ideia de socialismo”. Chama de pseudo golpe o que a história conhece como conspiração contra Mikhail Gorbachev. Seria, na verdade, um ato do governo, envolvendo todos os escalões, que acabou na dissolução do Partido Comunista e seu poder formal – político, econômico, social. Ao colapso do próprio sistema soviético Malia deu o nome de revolução. “Um dos maiores acontecimentos revolucionários da história do século XX”.
Após Gorbachev, com Boris Yeltsin, envereda a Rússia por caminhos da “transição”, os russos com fé num futuro pós-soviético, democrático, de economia de mercado. Quando, em agosto 1999, desgastado, com três primeiros-ministros depostos em tão pouco tempo, Yeltsin nomeia Vladimir Putin para chefiar o governo. Poucos deram crédito a este, quase todo mundo o subestimou, mas, em um ano, ele passa de chefe do Serviço Federal de Segurança (FSB, antiga KGB) e primeiro-ministro, a presidente. Venceu as eleições de março 2000 no primeiro turno, com 52,9% dos votos.
Desde o início, as ações de Putin voltaram-se a um escopo, ressaltam os analistas: reafirmar o papel da Rússia como grande potência internacional. Política externa atendendo a seus interesses políticos e econômicos (economia de mercado) e política interna também (estabilidade, pelo enfraquecimento da oposição, seja de parlamentares, oligarcas e imprensa).
O apoio que recebe, desde a primeira eleição (está no quinto mandato, até 2020), vale a ironia de alguns: a sucessão de Putin é Putin. “Sua popularidade deu à vida política russa uma qualidade rara: autoritarismo com o consentimento dos governados”, atesta o autor Dmitri Trenin, especialista em questões russas e soviéticas. “Controle é a palavra chave da presidência Putin. Ele centralizou o poder político, a ‘presidência vertical’, efetivamente subordinando ao Kremlin o legislativo e o judiciário, as administrações regionais e os meios midiáticos. A oposição, comunista ou liberal, foi contida ou marginalizada. A política pública foi substituída, de fato, por uma política burocrática, mais familiar. E o Kremlin assumiu o papel de criador de toda a vida pública. Erigiu partidos, administra eleições, planta sementes de uma sociedade civil saudável, organiza a juventude e desenvolve estruturas ideológicas. O que o Kremlin, singularmente, foi incapaz ou pouco propenso a confrontar é a corrupção, que prosperou no laissez-faire burocrático”.
A Grande Rússia. Nacionalista moderado, nunca um socialista ou populista de esquerda (segundo Trenin), Putin conseguiu restabelecer um tanto da unidade russa, aproximando os legados czarista e soviético – um casamento das duas revoluções, branca e vermelha. A gestão da memória da Revolução de 1917 continua a ser uma questão delicada; evoca o que o poder execra, como a ruptura da estabilidade e autoridade, ressalta a profesora Korine Amacher (Universidade de Genebra).
Em 7 de novembro 1918, quando do primeiro aniversário, os bolcheviques procuraram exaltar um milagre, já incerto se se manteriam no poder. Celebravam o triunfo do proletariado, alinhavam-se com os defensores da luta de classes, procurando projetar-se no futuro e ressaltando a ruptura com o passado czarista.
Agora, as celebrações do centésimo aniversário parecem esfumaçadas, com o novo rumo dado por Putin: ênfase à história. Em dezembro 2016, convidou – oficialmente – a Sociedade Histórica russa a formar um comitê de organização: “O centenário será uma excelente ocasião de nos debruçarmos, ainda uma vez, sobre as causas e a natureza da Revolução. Não apenas por historiadores e especialistas. A sociedade russa necessita de uma análise objetiva, honesta e profunda desse acontecimento. É nossa história comum, e devemos tratá-la com respeito”. (Ria Novosti, 1 de dezembro 2016). Em setembro passado, deu outro passo, promovendo encontro de mais de 100 historiadores, sendo 30 da América Latina, nos Institutos Estatal de Relações Internacionais de Moscou e de História Universal da Academia de Ciências, além da Sociedade Histórica.
Nesse afã de elaborar uma interpretação do Outubro 2017, já desde 2007 estão em uso, nos programas escolares federais, manuais de história sob módulo único – a Grande Revolução Russa. Sem pôr em xeque as visões políticas divergentes, prega respeito tanto aos “brancos”, a Rússia imperial, quanto aos “vermelhos”, a Rússia soviética. Uma mostra da opção escolhida: consolidar a sociedade, antídoto da luta de classes. No entanto, é de se esperar uma pletora de publicações, comentários, artigos, manifestações, enfim tudo quanto a Revolução de 1917 merece. Com pontos de vista diversos, independência de visões. Não há unanimidade com a voz oficial. Cem anos depois, o passado está presente, pedindo para aproveitar as lições.
Clecy Ribeiro
Jornalista, professora das Faculdades Integradas Hélio Alonso, RJ