‘Aquele que castiga possuído pela raiva não corrige, vinga-se.’ – Montaigne
O casal Antoinette Louppes e Pierre Eyquem tinha, antes do nascimento do filho Michel, comprado um castelo e terras férteis em Saint-Michel-de-Montaigne, pequena vila próxima da cidade de Bordéus, França, tendo Pierre, a partir daí, adotado a palavra “Montaigne” (pronuncia-se “Montenhe”) como sobrenome da família. Assim, quando Michel nasceu, no dito castelo, em 28 de fevereiro de 1533, já o dito sobrenome esperava por ele.
Porém o recém-nascido, filho de pais ricos e nobres, foi levado a uma casa de camponeses onde seria amamentado e cuidado por uma ama de leite durante dois anos. E em 1539, o pai de Michel de Montaigne, Pierre de Montaigne, internou-o, com apenas seis anos, no Colégio de Guyenne, famoso centro humanista da França, situado em Bordéus e dirigido, na época, pelo português André Gouveia.
Após concluir o período de estudos no Guyenne, cursou Direito na Universidade de Bordéus, curso concluído, porém, na Universidade de Toulouse.
Em 1565, Montaigne (como, então, Michel passara a ser conhecido) já era uma das figuras importantes do humanismo, da jurisprudência, da literatura e da filosofia. 1565 foi também o ano de seu casamento com Françoise de La Chassagne. Tiveram seis filhos, porém apenas uma menina, Leonor, sobreviveu.
Antes de casar, ou seja, desde 1554, Montaigne já exercia o cargo de juiz em Périgueux e tornara-se conselheiro da corte dessa cidade. Quando a corte foi dissolvida, mudou-se para Bordéus, onde, além de suas funções como juiz, atuou no parlamento dessa cidade, da qual seria também prefeito. Aí, também, viria a conhecer outro humanista e filósofo – Étienne La Boétie –, e iniciariam, então, a mais famosa “amizade intelectual” da cidade.
Montaigne, porém, mais uma vez, testemunharia e lamentaria outra morte prematura, agora a do amigo Etienne, aos 33 anos, vítima de um dos surtos de epidemia que grassavam na Europa.
Ensaios. Em 1570, no entanto, Montaigne, acabaria por declinar de seus cargos, resolvido que estava a buscar retiro na propriedade da família e lá dedicar-se integralmente a escrever suas reflexões, que “batizara” de “ensaios”, novo gênero literário criado por ele para expressar com simplicidade e leveza sua filosofia. No desempenho dessa tarefa filosófica e literária, Montaigne trancava-se na torre do castelo, tendo apenas livros por companhia.
Para seu pesar, no entanto, o retiro não seria tão prolongado como desejara que fosse, pois teria de assumir novos compromissos sociais e políticos. Isso num dos séculos mais conturbados da história da França, marcado pelo belicoso e sangrento cisma político-religioso entre católicos e protestantes. E assim a conclusão e publicação de seu livro, Ensaios, ficariam para mais tarde, o que, com efeito, só viria a concretizar-se em 1580.
Em seus Ensaios, Montaigne usa o ceticismo – recebido por ele dos pensadores céticos do quinhentismo – como crítica da “razão dogmática”, ou “filosofia dogmática”, em outras palavras, pretensão humana de alcançar um conhecimento definitivo da realidade e de estabelecer sistemas de valores absolutos e necessários – “o que resulta em consequente intolerância a opiniões ou códigos de valores diferentes”.
A “constatação cética” do limite da razão, ou, em outros termos, do limite cognitivo do ser humano, teria sido o motivo que levou Montaigne a formular uma “defesa apologética” da religião, que, como “fé suprarracional”, não deveria ser alvo de ataques da filosofia dogmática. Entretanto, ao mesmo tempo, o católico e cético Montaigne discorda do empenho da Igreja em tentar provar a racionalidade dos dogmas do catolicismo, despropósito que ele tacha de “absurdo” em sua obra.
Ademais, levando em conta razões religiosas, políticas e bélicas da Europa de seu tempo, Montaigne se manifestou a favor do que chamou de “adesão não-dogmática” à tradição religiosa. Assim, mediante a natureza contextual daquele momento histórico, rejeita as inovações, que, como a Reforma Protestante, “não podiam demonstrar, de modo conclusivo, sua verdade ante a tradição que combatiam, e sim produzir uma situação de subversão civil”, que era, de fato, sustentava ele, o que as guerras religiosas na França estavam provando.
E o que dizer da “catolicidade” de Montaigne?
Sabe-se que era filho de mãe judia e que viveu na época da Reforma Protestante. Esteve, de fato, numa encruzilhada, mas, ante o dilema, optou pela permanência na tradição, ou seja, na religião católica. O que não o impediria de “criticar alguns exageros” praticados pela Igreja e seus fiéis.