Save the Children – Salvem as Crianças. Assim a Unicef intitulou campanha recente, sintomática das projeções “vem mais por aí”. Basicamente, como falar com crianças sobre guerras, respingos da disputa dos aspirantes à hegemonia global. Que façam perguntas para entender o incompreensível, que expressem sentimentos. E que as respostas sejam honestas, informem, reduzam ansiedades e reassegurem confiança para que prossigam com suas rotinas. Positivo também promover a ideia de “sentir-se útil”, doar o que estiver a seu alcance e arbítrio. De fato, um aprendizado de consumo e solidariedade que vale para todos os tempos.
O mundo entra, provavelmente, em uma década sem paz, nervosa – adverte o ex-vice-chanceler da Alemanha, Sigmar Gabriel. Não necessariamente uma guerra perpétua, “mas devemos estar preparados para conflitos mais intensos e em maior número: comerciais, econômicos e financeiros, cibernéticos, campanhas de desinformação e o uso da força militar como instrumento da geopolítica”. A guerra na Ucrânia ele a expõe como consequência de uma era que chega ao fim.
Tem sua lógica. A disputa hegemônica geopolítica, mascarada de ideológica – democracia versus autoritarismo – ferve há décadas e nutre-se do bullying ambivalente dos estrategistas. Tende a voltar-se ao segundo foco, Taiwan, depois da Ucrânia. Autor, dentre outros, do imperdível Guerra por Recursos (Metropolitan Books, 2001), Michael T. Klare considera a invasão à Ucrânia o exemplo mais conspícuo da guerra geopolítica. Mas localizações estratégicas e o acesso a matérias-primas vitais alertam, ainda, para a área do Báltico, o mar do sul da China com suas fronteiras múltiplas (China, Brunei, Indonésia, Malásia, Filipinas e Vietnã), o mar do leste chinês com ilhas desabitadas reclamadas pelo Japão, a zona fronteiriça indo-chinesa já em certos acertos, o Ártico partilhado pelo Canadá, Groenlândia, Noruega, Rússia e Estados Unidos.
No Pacífico Sul, Turquia e Índia buscam maior poder regional. No mar Cáspio, são cinco ex-repúblicas russas e o Irã às voltas com reservas de petróleo de difícil, e cara, extração.
Big Bang nuclear. Entre dois fogos, Taiwan tem data marcada para explodir: 2027. Ou não. Irá depender da (in)sensatez, (in)coerência, (im)paciência, (des)humanidade. A ilha é considerada um marco na construção de um mundo plural, a partir do Pacífico Sul. Projetaria o poder chinês para fora, “em medida impensável”, diz o geógrafo e autor Robert Kaplan. No cenário invasão chinesa a Taiwan e resposta militar norte-americana, somam-se os países ali envolvidos em disputas territoriais e alianças de defesa. O ex-presidente da Rússia, Dmitry Medvedev (Vk.com) projeta a imagem de um Big Bang nuclear, precedido do colapso dos sistemas de energia e alimentos, ruptura de todos os sistemas de segurança coletiva. Um arrastão de efeitos inimagináveis, de longo prazo.
Estudo da Rand divulgado em 2020 conclui que os Estados Unidos já não têm como defender Taiwan. De resto, a Lei 1979 (sobre as relações bilaterais) deixa em suspenso que atitude o governo tomar em caso de invasão. Não há “clareza” nos termos da lei, mas “ambiguidade” – o governo nem se obriga a defender nem a não defender a ilha. Klare lembra que, em 2024, haverá eleições ali, e quem sabe inverta-se a atual tendência separatista. Pesquisa de opinião recente mostra que 85% dos taiwaneses preferem, a um embate com a China, manter algum tipo de status de independência.
Relatório 2021 (anual) do Pentágono ao Congresso “marca” data para outra guerra: a partir de 1 de janeiro 2027. E por quê? Bem, em 2020, a China anunciou “um novo marco” na modernização do Exército de Libertação Popular, 2027, entendida como a capacidade de estar conectado a um sistema de sistemas voltados à guerra inteligentizada (do inglês intelligentized).
Em suma, pronto para ação, em caso de “uma eventualidade” em Taiwan. Guerra sofisticada, plenamente apoiada no domínio da informação, enquanto Taiwan apoia-se na defesa (as compras de armas dos Estados Unidos, desde 2010, somam US$ 23 bilhões). Ressalta ainda o relatório: “Pequim busca reformular a ordem internacional para alinhá-la melhor a seu sistema autoritário e interesses nacionais, como componente vital de sua estratégia para atingir o “grande rejuvenescimento da nação chinesa”.
Socialismo moderno. Previsto para 2049, esse grande rejuvenescimento tornaria a China um país socialista moderno, levando, além vida doméstica, seu conceito de “uma comunidade de destino comum”.
Numa visão contraditória, ou mais amena, também em fins de 2021 o Instituto Australiano para Assuntos Internacionais divulgou relatório especial, com análise do pesquisador Cheng-yi Lin sobre as tensões no estreito de Taiwan: “Embora não afaste a possibilidade de conflito aberto, Lin é menos alarmista quanto a prognósticos de invasão chinesa a Taiwan, em cinco ou seis anos”. Explica: as atividades no estreito são provocações táticas ou militares, psicológicas, para enfraquecer a determinação taiwanesa, “subjugar o inimigo sem luta”, e anular uma possível resposta dos Estados Unidos. Estes, por sua vez, adotam bullying semelhante no estreito, e argumentam: invadir Taiwan é um “convite à intervenção internacional”.
Para a China, resolvida a questão Taiwan, isso permitiria voltar-se a outros interesses marítimos: proteger recursos na África subsaariana e conectá-los a portos no Atlântico. Por isso, adula a ilha com investimentos, o comércio crescendo a cada ano, bem como o turismo. Recente acordo Taiwan-Estados Unidos (para coordenar ações da Guarda-Costeira) contrapõe a criação, em outubro 2020, de um grupo de trabalho China-Estados Unidos (anual) para a comunicação de crises. Ajudam, também, contatos mais frequentes e cooperação limitada a áreas de interesses nacionais afins. In loco, o governo americano assegura apoio a parceiros e aliados (Austrália, Japão) e os acordos de defesa Aukus (com Austrália e Grã-Bretanha) e Quad (foro quadrilateral com Austrália, Índia e Japão) amenizam os temores em Taiwan.
Às vésperas da guerra declarada na Ucrânia, no início de fevereiro, a Casa Branca divulgaria sua Estratégia Indo-Pacífico, “o verdadeiro epicentro da atividade econômica mundial”.
Há palavras esperançosas também de Wang Jisi, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos. E já lá se vão mais de dez anos: “A guerra entre China e Estados Unidos por causa de Taiwan seria um pesadelo, e ambos tentarão, a duras penas, evitá-la. Apesar das diferenças, não há razão para que recorram à força”. Altos e baixos, o diálogo arrasta-se. Parafraseando Drummond de Andrade em sua “cidadezinha qualquer”: o povo vai a correr/ a criança vai a correr/ o soldado vai a correr/ no espaço os mísseis voam/ êta, guerras bestas, meu Deus!