O conceito de “aproveitamento”, palavra presente no título desta reflexão, ultrapassa sua significação etimológica mais provável, penetrando no campo do respeito e da reverência que todos devemos às gerações que nos antecederam. Ao falar de aproveitamento, referimo-nos à atitude inteligente de absorção dos conteúdos e exemplos profícuos produzidos por nossos ancestrais.
Procuraremos demonstrar que o olhar espiritualista proporcionado pelo Racionalismo Cristão nos oferece um referencial seguro para colher das gerações passadas o que de mais positivo elas nos legaram, sem incidir em atitudes descontextualizadas e antiquadas. Com certeza, é notório que quando o ser humano rompe abruptamente com a tradição e a cultura, acaba por vivenciar um vazio no qual questões fundamentais passam a ser tratadas com um nível intelectual muito primário, tendendo, no mais das vezes, à superficialidade.
No período em que vivemos, dificilmente nos damos conta da necessidade de renúncia ao inveterado costume de desprezar os exemplos e as experiências dos mais antigos, segundo o qual – acredita-se – a pessoa, para estar atualizada, deve pensar e agir em consonância exclusiva com os valores da atualidade, em flagrante anulação do autêntico tesouro contido na tradição.
O entendimento correto de atualização, contudo, deve ter um sentido mais amplo e mais significativo, requerendo a suspensão de preconceitos e a consideração de que é possível articular a convergência de propósitos próprios da vida moderna com os subsídios advindos daqueles que nos antecederam.
Os grupos sociais que alcançam melhores resultados na criação dos próprios filhos e gozam de melhores índices de desenvolvimento humano absorvem energias sempre novas da sabedoria de seus pais, bem como da tradição de seus avós. Se meditarmos com sinceridade e nos deixarmos envolver pela sensibilidade que nos distingue como seres humanos, reconheceremos com humildade que somos devedores daqueles espíritos de escol que nos revelaram a vida como missão de elevação, a cultura como criadora de sentido e a transcendência como fonte de realidade.
O que estabelece a singularidade e a amplitude da autocompreensão do ser humano na atualidade, o que o distingue de forma positiva é precisamente a tomada de consciência de sua essência, de sua autonomia, de sua criatividade e, por isso, de sua responsabilidade perante a história e gratidão diante de seus ascendentes. Depreende-se daí a razão dos mais atualizados estudos antropológicos centrarem-se menos na ideia de natureza e mais no conceito de cultura, sem se apartar, contudo, da história.
Na verdade, o sentimento de gratidão que brota espontâneo da observação humilde do empenho de homens e mulheres, sejam nossos pais ou não, que trabalharam e se esforçaram para que hoje gozemos de melhores condições de vida faz com que as relações que estabelecemos com o próximo sejam menos inflexíveis, soberbas, impacientes e exageradas na afirmação do próprio eu.
A pessoa que pretenda aprofundar-se na compreensão de si mesma e no conhecimento filosófico-espiritualista, que o torna mais equilibrada e tranquila, encontrará em sua tarefa mais dificuldades, que se tornarão intransponíveis caso ela não reconheça o valor contido na experiência acumulada ao longo das gerações.
O ser humano absorve as impressões de tudo aquilo que o rodeia, do meio no qual se acha imerso. Esse meio é o pano de fundo das mais diversas manifestações culturais e é estruturado pelas contribuições de um sem-número de gerações, como já o dissemos, que se sucedem no tempo e no espaço.
Antes de analisarmos o processo de aproveitamento dos exemplos de nossos antepassados, evitando replicar seus desvios, cumpre esclarecer que no relativo ao conceito de cultura há, mormente nos tempos atuais, muitas deformações, reduções e desencontros, pois cultura, meus amigos, não é tão somente urbanidade, boas maneiras, erudição ou conhecimento acadêmico. Nesse passo, há um fator muito bem expresso por Malraux: “A cultura não é somente conhecer Shakespeare, Vitor Hugo, Rembrant ou Bach: é antes de tudo amá-los”. Diante dessa perspectiva, surge a consciência de que sem desenvolvermos uma visão que ultrapasse condicionalismos, que transcenda a realidade imanente, não poderemos, por um lado, olhar o passado absorvendo as grandes lições nele contidas, nem, por outro lado, filtrar e rejeitar os costumes anacrônicos.
Cabe ponderar que apenas uma experiência de vida pautada na ética e no respeito ao Transcendente é admissível e útil àquele que busca espiritualizar-se, dilatar seu horizonte de compreensão. A pessoa penetrada pelos valores morais difundidos pelo Racionalismo Cristão não possui, exceto no campo de suas convicções morais e filosóficas, um sistema cerrado de conceitos, que desconsidera e condena toda atitude que não se concilie com seus padrões e ideias; por isso mesmo, nutre-se de todas as experiências positivas vivenciadas pelo gênero humano.
Ao longo desta reflexão procuramos deixar patente como os princípios sólidos, as diretrizes honestas e os exemplos elevados das gerações anteriores conservam, ainda hoje, o seu valor, sugerindo critérios atuais e fundamentais para que os seres humanos possam colocar-se em condição de avaliar as demandas e desafios que revestem a vida em sociedade e decidir conscientemente sobre as responsabilidades resultantes de suas escolhas.
Os avanços tecnológicos e científicos, o desenvolvimento industrial, enfim, as melhorias nas condições de vida exprimem, sem dúvida, elementos benéficos e que representam o aproveitamento dos esforços e do empenho de outras gerações. Contudo, quando analisamos a questão pelo prisma da espiritualidade, percebemos que todos os fatores positivos da civilização representam, em última instância, meios e instrumentos, jamais devendo ser tomados como valores absolutos.
Quando o ser humano se deixa penetrar pelos magníficos valores da espiritualidade – que eleva e dignifica o ser humano de forma única – consegue então sintonizar os elementos e exemplos produzidos por outras gerações, analisando-os com profundidade e sintetizando-os com coerência.
No que se refere à análise do passado, edifiquemo-nos no que nele houve de belo e virtuoso, e não nos prendamos no que nele houve de desacerto. Tiremos, apenas, lição inteligente dos tropeços vivenciados por aqueles que nos antecederam e das consequências que suas ações menos felizes desencadearam ao longo do tempo.
Aproveitaremos os exemplos de nossos pais, avós e das outras gerações sem replicar comportamentos inadequados ao dilatarmos nossa visão a fim de alcançar a transcendência e vivenciar os valores nela contidos. Com certeza, é o discernimento advindo da assimilação e prática dos princípios racionalistas cristãos – transcendentes e elevados por excelência – que permitirá ao ser humano realizar, de modo admirável, as exigências de uma vida digna e reta, valorizando a evolução da sociedade sem jamais descuidar-se ou esquecer-se da importância da espiritualidade, muito menos negá-la.
Muito Obrigado!