Conceito ‘amor’ em Samel e Gasset

 

O tema “amor” foi analisado por vários intelectuais ao longo do tempo, muitas vezes, em abordagens demasiadamente simplistas e parciais. Iremos nos restringir, neste momento, em compreender apenas as definições de dois escritores em relação ao assunto em questão: Caruso Samel (1929) e Ortega Y Gasset (1883-1955), usando, quando for necessário, outros escritores para exemplificar. Assim, usaremos os livros Reflexões sobre os sentimentos (2005), de Caruso Samel, e Estudos sobre o amor (1960) [data do original: 1939], de Ortega Y Gasset, como fontes para nossas reflexões.

O “amor romântico” foi rejeitado pelos dois teóricos. Segundo Caruso Samel (Samel, 2005), o conceito “amor” foi deturpado ao longo do tempo, principalmente, pelos poetas e romancistas. Para muitos deles, o amor é a idealização da pessoa amada, prevalecendo mais a imaginação do que a racionalidade, quando se pensa em alguém. Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832) e Camilo Castelo Branco (1825-1890) foram dois dos responsáveis por disseminar no mundo essa visão do “amor romântico” quando publicaram os livros O sofrimento do jovem Werther (1774) e Amor de perdição (1862), através do movimento literário intitulado romantismo. 

Ortega Y Gasset, por sua vez, definiu que foi o romancista Stendahl (1783-1842) o difusor da representação do amor romântico quando escreveu o livro Do amor (1822). Para ele, o amor seria admirar alguém diferente do que ela é, em muitos casos, atribuindo valores e virtudes que a pessoa não possui: uma “cristalização” do ser humano. Como se fosse uma ilusão de ótica, o ser humano esquece de seus deveres e obrigações e fica, na maioria dos casos, pensando diuturnamente na suposta pessoa “amada”. Esse “encantamento”, todavia, dura um curto período de tempo. É passageiro e fugaz. Em ambos os casos trata-se, portanto, de uma desfiguração da realidade. 

Pode-se concluir que “amor romântico” é uma interpretação incoerente, pois não compreende a pessoa tal como ela é, mas sim como ela supostamente deveria ser.

A visão materialista do amor difere da visão romântica do amor. Porque não se imagina um ser humano diferentemente do que ela/ele é. Ao contrário, percebe-se o outro com realismo, mas usamo-lo, na maioria dos casos, somente para realizar necessidades meramente sexuais. Nesse estado instintivo naufragam adolescentes, adultos e idosos, desejando a posse do objeto, tendo em vista a busca desenfreada pelo prazer (Samel, 2005), “custe o que custar”, como diz o ditado. O filósofo espanhol (Ortega Y Gasset, 1960: 159) percebeu que, quando uma pessoa deseja alguém com o intuito de concretizar apenas práticas sexuais, trata-se de um “namoro” passageiro. O namoro começa, pode-se dizer, com uma data de término prevista.

A busca pelo sexo, mesmo que não seja explícito, é o fim último buscado pelas pessoas que enveredam no amor materialista. Uma observação interessante feita por Gasset foi perceber que o instinto sexual é mais constante na mulher do que no homem. Isso porque a constituição biológica e psíquica da mulher volta-se mais para os deveres maternos e familiares, se comparada aos homens. De modo distinto, no gênero masculino, o sexo localiza-se em segunda ou terceira lugar na hierarquia de necessidades. Os homens preocupam-se com as situações extraordinárias, originais e problemáticas da existência humana  (Gasset, 1960: 162); diferentemente, as mulheres ocupam-se presencialmente com os assuntos rotineiros.

O espanhol disse que as mulheres conseguem facilmente conciliar tanto a vida espiritual quanto a vida material. Assim, o corpo físico, a alma (o corpo fluídico) e o espírito, simplificando o raciocínio, formam um todo harmônico. Para o homem, em seu entender, isso é impossível. Ora, esse ponto de vista acerca do gênero feminino vai de encontro aos ensinamentos da filosofia racionalista cristã. Pois, como se sabe, o espírito que decide reencarnar em um corpo feminino quase sempre tem como propósito ser mãe (Faria, 2013: 66-71). Gasset entendeu que o amor espiritual é de ordem transcendental. Essa peculiaridade se explica racionalmente através das escolhas pessoais feitas pelos próprios indivíduos. Pois “se o amor é, com efeito, tão decididamente escolha, como eu suponho, possuiremos nele, ao mesmo tempo, uma ratio cognoscendi e uma ratio essenci do indivíduo” (Gasset, 1960:157).

Em suas análises sociológicas e filosóficas, ele percebeu algo evidente – embora seja ignorada por muitos -: as sociedades constituem-se de minorias (espíritos mais evoluídos) e maiores (espíritos menos evoluídos). Nesse sentido, quando uma pessoa escolhe outro alguém como parceiro, podendo ser pessoas morais ou imorais, simultaneamente, revela à sua própria capacidade (nível espiritual).  O “amor é uma escolha profunda” (Ortega y Gasset :158), que, consequentemente, denota as biografias íntimas dos seres humanos, menos ou mais elevadas. O ato de amar, em sua complexidade máxima, é algo raro, restrito a poucos, afirmou ele.  Depende exclusivamente da harmonia entre duas pessoas – quando é recíproco – de elevados níveis intelectuais e morais (níveis espirituais superiores).

Ortega Y Gasset se aproxima, assim, da definição do amor espiritual delineado pela filosofia racionalista cristã, encontrando sua sintonia nos livros elaborados pelo escritor Caruso Samel. Segundo Samel, o amor é o mais nobres dos sentimentos, é espontâneo, é a própria razão da vida (Samel, 2005). Ortega Y Gasset, ironicamente, chamou atenção para o fato de quem teoriza sobre o amor, na verdade, nunca amou.