Correspondência

Hoje tudo é pelo WhatsApp. Até jornalismo, imaginem! Alguém ainda estuda o gênero carta? Já recebeu alguma? Já escreveu alguma? Eu tenho várias! Veja o que pensava Fernando Pessoa, que nasceu em 15 de junho, há 130 anos (ou o seu heterônimo Álvaro de Campos) sobre um tipo de carta especial:

Todas as cartas de amor…

Todas as cartas de amor são

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,

Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser

Ridículas.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

É que são

Ridículas.

O poema Todas as cartas de amor é de 1935. Anos antes, em 1919, Franz Kafka escreveu ao pai. Obviamente, não uma carta de amor. Uma carta com mais de cem páginas, que nunca foi entregue e só foi publicada após a morte do autor. Uma carta dura.

Eis um trecho:

“Querido pai,

Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes na justificativa desse medo, que eu não poderia reuni-los no ato de falar de modo mais ou menos coerente. E se procuro responder-te aqui por escrito, não deixará de ser de modo incompleto, porque também no ato de escrever o medo e suas consequências me atrapalham diante de ti e porque a grandeza do tema ultrapassa de longe minha memória e meu entendimento. Para ti a questão sempre se apresentou bem simples, pelo menos enquanto falaste dela diante de mim e, sem cuidar a quem, diante de muitos outros.

Para ti (grifo meu) as coisas pareciam ser mais ou menos assim: trabalhaste pesado durante tua vida inteira, sacrificaste tudo pelos teus filhos, e sobretudo por mim, enquanto eu “vivi numa boa” por conta disso, gozei de toda a liberdade para estudar o que bem quisesse, não precisei ter nenhuma preocupação com meu sustento e portanto nenhuma preocupação, fosse qual fosse; não exigiste gratidão em troca disso, tu conheces “a gratidão de teus filhos”, mas pelo menos um pouco de boa vontade, algum sinal de simpatia; em vez disso eu sempre me encafuei (escondi) de ti em meu quarto, com meus livros, com amigos malucos, com ideias extravagantes; falar de maneira aberta contigo eu jamais falei, no templo jamais fui ao teu encontro, em Franzensbad jamais te visitei e aliás jamais tive senso de família, não me importei com o negócio nem com teus demais assuntos, a fábrica eu joguei às tuas costas e depois te abandonei, apoiei Ottla em sua teimosia e, enquanto não movo um dedo por tua causa (nem sequer uma entrada de teatro eu trago a ti), faço tudo por estranhos”.

Quem continuar a leitura vai perceber que, na verdade, o filho Kafka acusa o pai, Hermann Kafka, de frieza e de ser autoritário, o que teria minado a autoestima do escritor, que cresceu em um clima tirânico. Isso explica um pouco por que o autor se debruçou sobre enredos como o de “Metamorfose”, em que o personagem principal se vê transformado em um inseto. Ou então n’ O Processo, em que o personagem principal é acusado, julgado e condenado à morte por um motivo desconhecido.

Esses exemplos te inspiraram? Pensou em alguém? Ou em algum assunto? O Racionalismo Cristão recebia cartas. O endereço continua: Rua Jorge Rudge, 119, Vila Isabel, Rio de Janeiro – RJ.

A seguir, uma carta fictícia, sobre um assunto qualquer…

“Caríssima!

Posso escrever para desejar-lhe “feliz aniversário”? É que a data já passou há algum tempo, e eu também me passei. Até me envergonho. Como vão as coisas?

Nunca mais nos vimos. Faz mais de ano.

Tenho andado… Bem, você também deve estar ocupada. Mas nem um telefonema? Uma mensagem no Face ou no Twitter? Uma curtida? Um zap? Um recado por um amigo? Um cartão? Pois mando-lhe esta carta!

É para dizer que sinto saudades. Com ela, vão impressas as minhas últimas selfies. Atrás das fotos, o lugar onde estive. Você vai ver que o meu cabelo continua rebelde, com mais alguns fios brancos; as olheiras se acentuaram; também dá para ver que estou mais gordo. Só o afeto não muda. Não se esqueça.

Risos.

Beijão!”