Olhando eu a vitrine de máscaras de uma loja, do nada achega-se uma senhora, ar taciturno e reflexivo: “Até quando vamos usar máscara”? Ensaio uma evasiva – “ninguém sabe” –, e arrisco: “É bom cuidar do sistema imunológico”.
Ambos importam. Alguns países, com percentual de vacinação acima de 50%, já liberaram seus cidadãos da máscara, mas a Organização Mundial de Saúde pede cautela. A imunidade coletiva pode tardar anos. E nenhum país está plenamente preparado para o que já se tem como muito provável: outra pandemia, no mais tardar, dentro de duas décadas. A covid, de longo prazo, expande-se de forma sindêmica, ou seja, em sinergia com outras pandemias ou doenças, infecciosas ou não, concomitantes ou sequenciais. A imunidade é fator chave. Em sua sapiência, a crendice popular dos antigos – Fulano tem sangue ruim – usava sanguessugas para tratar qualquer doença em começo. No Brasil e países afins (incluímos a Índia?), nem preciso será esperar a doença. Desnutrição ou má nutrição, uso de drogas, distúrbios cardiopulmonares são um campo aberto. Segundo o Fórum Econômico Mundial, o sistema imunológico global está seriamente comprometido, com 60% das populações vulneráveis.
Biopolítica. Data dos anos 1990 o emprego do termo sindêmico, cunhado por Merrill Singer para descrever as disparidades na saúde por violência estrutural, num contexto sócio-econômico. Bem antes, há quase meio século, o sociólogo Michel Foucault lançara o conceito da biopolítica, ou seja, o poder no controle da vida, ditando quem deve viver ou morrer. Oportuna, assim, a menção que a ele faz Richard Horton (The Lancet) para explicar as razões que concedem a esta pandemia disseminar-se “de forma sinistra”. O poder sobre o corpo, “fim supremo do governo”. Saúde da população como fundamento para proteger e aumentar as forças econômicas produtoras. Horton amplia o debate sobre a distribuição de poder na sociedade: governo central x local, jovem x velho, rico x pobre, branco x negro, saúde x economia. No caso específico do Brasil, extravasa o conceito da biopolítica para a política da morte, a necropolítica, de fato uma atualização do pensamento de Foucault, aprofundado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe.
Em seu ensaio Necropolítica, Mbembe diz: mais que o direito de matar, há o direito de expor à morte – civil ou social. Em tese, os mortos-vivos. “A soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é”. Como exemplo de uma forma bem sucedida – e atual – de necropoder evoca a ocupação da Palestina por Israel. O exemplo de Horton volta-se também ao “E daí?” do presidente brasileiro sobre as mortes: “A necropolítica está viva no Brasil”. Vê o país vivendo uma crise também ética, com a “desastrosa ação do governo”, a partir mesmo da tentativa frustrada de privatizar a assistência fundamental à saúde, o forte negativismo científico e ausência de um plano nacional de respostas, inclusive à vacina. Difundido na América Latina pelo sociólogo mexicano José Manuel Valenzuela (debate sobre a narcocultura) e por feministas contemporâneas, como Judith Butler e Sílvia Federici (debate sobre violência sexual contra a mulher e minorias), o conceito, em política climática, explicaria a destruição material da Terra. Também de impacto evoca-se o genocídio étnico em Ruanda, em 1994, sob total omissão internacional – como agora.
Mundos de morte. Formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte encontram apelo no interesse em criar “mundos de morte” (favelas), à semelhança das antigas fazendas e colônias escravagistas. A força de trabalho informal (no Brasil cerca de 40%) escapa; significa produtividade pós-pandemia e voto. Quando os serviços de saúde estarão preparados para lidar com os efeitos da política de vida e morte? A pandemia tende a desembocar em endemia e sindemia, cujas perspectivas alarmam. A curto prazo, a síndrome pós-covid ainda oferece poucos detalhes de sua evolução, mas se tem como certo que persiste por mais de cinco a 12 semanas, às vezes meses mais, sem diagnóstico alternativo. Os sintomas mudam, vão e vem com o tempo. Impossível chegar ao dois mais dois são quatro. Um ano de pandemia trouxe lições diferentes para cada país. Causas favoráveis ao vírus incluem migrações de massa, conflitos civis, prisões, desaparecimento de ecossistemas.
A revista Futuribles Internacional projeta, até 2040, múltiplas crises sanitárias mundiais, devido ao (re)aparecimento de novos vírus e variantes mortais. Falta de recursos, desviados pela constante dos interesses, pode retardar a pesquisa cientifica. Mais tensão diante do clima de imprevisibilidade. O ano apresenta-se como possível marco de transformações definitivas nos modos de vida do ser humano, talvez com o fim da globalização. Ciência e religião ganham destaque. A primeira procura reduzir a desconfiança do povo, oriunda do descrédito das instituições ditas democráticas. Persistente, esmera-se em oferecer acesso à informação precisa e suficiente. Na informação global, a Universidade Johns Hopkins é um “must” de confiabilidade (Robert Muggah em Project Syndicate); no nacional, impossível citar tantos quantos ao nível de um Butantan, Fiocruz, centros de universidades e de pesquisa. Na esfera emocional, a ciência clama por resposta urgente ao isolamento, consulta psicológica, meios contra a violência doméstica e urbana. Fazer-se acreditar.
Tornam-se mais flagrantes as conotações da fé. Religiões seculares, credos, seitas enfronham-se cada vez mais na política, uma força presente por toda parte. Estão em desalinho com a ciência, mas também fazem parte da vida cotidiana, os fiéis passíveis de manipulação, diante da dor. No mundo árabe, o islamismo é uma força de contestação (não tanto como os radicais). A igreja evangélica, longo tempo ausente da esfera política, investe no espaço público e já pesa em escrutínios eleitorais. A igreja católica, perdendo influência, mantém-se na tradição: segue as normas. Em todas, há altos e baixos na adaptação às circunstâncias (políticas, econômicas, sociais, sanitárias), mas o recurso ao online ajuda a digerir a nova realidade.
E como estamos lidando com ensaios, lembramos o filósofo francês Marcel Mauss e seu Ensaio sobre a dádiva: dar, receber, retribuir. Um século depois, nesta época de barbárie, que sentido dar à dádiva e à retribuição?