Trata-se de escolha ou acomodar–se entre todos, porque plurais? “Caminhos velhos não condizem com situações novas”. Com esse pensamento, expresso no Fórum Ministerial União Europeia-Índia Pacífico 2023, o ministro do Exterior da Índia, S. Jaishankan, não dissimula. Nada impede o país de unir-se aos Brics, Quad, Organização da Cooperação de Xangai, G20, G7, G77 e quantos mais Gs existirem. Fora outros blocos regionais, também alianças econômicas e/ou de seguran-ça: Apec, Asean, Aukus, Ipef, Otan. Dos não alinhados em 1961 ao fim da Guerra Fria, em 1991, quando mudam gradualmente as relações internacionais, a Índia atual quer-se pragmática, dinâmica. Defende uma autonomia estratégica, de interação com o mundo multilateral, para saber lidar com suas incertezas. Neste século XXI, ambiciona prosperidade econômica, avanço tecnológico, pesquisa e inovação, influência e projeção, segurança. Sim a interesses; valores pesam menos ou nada. Os Brics expandem-se e se consolidam no mundo global, muito afim ao seu apelo de desenvolvimento sustentável, princípios de igualdade e redução da pobreza, combate ao terrorismo, capital para a mudança climática. O Quad (Diálogo do Quadrilátero) pertence ao regional, junto com os Estados Unidos. Os Gs mesclam ocidentais e não-ocidentais. É assim que a Índia pressupõe segurar-se em coligações que avalia estratégicas. Contudo, as aspirações nacionalistas esbarram em persistente refreamento da capacidade de crescer – e poder usufruir do que a Índia considera uma herança civilizacional. Clima, por exemplo. Temperaturas em aquecimento ameaçam regiões inteiras, levando secas, perda de colheitas, endividamento ao setor agrícola, doenças mentais. O separatismo religioso é outra pedra no caminho. Carrega até conflitos judiciários, como a recente Lei de Emenda da Cidadania, que discrimina os muçulmanos e favorece migrantes ilegais bem-vindos. Às vésperas de 44 dias de votação, a lei pretende desviar o foco de uma terceira pedra: o esquema de financiamento anônimo das campanhas, uma troca de favores com os industriais ricos que investem nas zonas econômicas especiais, livres de impostos.
Aposta na tecnologia. O país elege agora governo já decidido por popularidade pouco contestada. O premiê Narendra Modi entra no terceiro mandato com diretrizes políticas de intolerância religiosa e repressão violenta ao ativismo dissidente. Mesmo se a Índia continua sendo a maior e mais antiga democracia do mundo. Lugar-comum que se repete à conveniência, ampara também medidas controversas, sobretudo econômicas. Vítima das mais recentes: o ativista Disha Ravi, co-fundador da Fridays for Fortune, grupo de jovens que tem à frente Greta Thunberg. Acusado de sedição, a justiça o poupou.
O tema clima/alimentos/energia tornou-se foco crucial. Modi quer fazer deste “o momento da Índia”. Destinou o equivalente a US$1 trilhão à busca de soluções e respostas até 2030, segundo dados do Fórum Econômico Mundial. Encoraja iniciativas, independentes e individuais, sob a Missão Vida, made in India: um estilo voltado à defesa do meio ambiente, com uso de energia solar, ressurreição da antiga arquitetura nacional (mais resistente ao calor que a moderna), hidrogênio verde para descarbonização mais rápida, reflorestamento em larga escala. A luta de uma vida, de Vandana Shiva – plantar árvores, estocar sementes, replantar, alimentar, mobilizar. Latentes, preocupam tendências de aprofundamento da cisão norte rural e sul rico, crescendo na indústria do software. Bangalore hospeda fábricas de montagem taiwanesas de iPhones, cunhando um sul engenhoso, de startups e tecnologia avançada, distanciando-se das castas inferiores. O Fórum Econômico Mundial louva ao país, inclusive, a Infraestrutura Pública Digital, PDI na sigla em inglês, basica-mente para identificação digital e in-tercâmbio de dados.
O momento Modi. Se, em 1947, houve um encontro com o destino – palavras do Mahatma Gandhi ao celebrar a independência –, em 2004 chegou o encontro com a globalização, e duas décadas depois, 2024, o momento de Modi. Em 2012, o geógrafo Robert Kaplan já observava queo pêndulo Índia, entre Estados Unidos e a parceria China-Rússia, poderia determinar o curso geopolítico na Eurásia, neste século XXI. A Índia, dizem alguns, já integra a Iniciativa Cinturão e Rota (Corredor Internacional de Transportes Norte-Sul), porquanto a atraem os mercados da Ásia Central ao Cáucaso, braços estendidos também ao comércio com a Rússia. Com os Estados Unidos, segue uma diplomacia de compromisso desobrigado. Usufrui algumas concessões e vantagens, nada que altere os fundamentos das relações, apenas cordiais. Washington – e o Ocidente em geral– reservam à Índia o papel de equilíbrio com a China, daí tentarem desviá-la da Rússia, sob o argumento de que é coisa do passado, um legado soviético “que se está evaporando”. Contra-argumento: o fornecimento do petróleo russo é coisa do presente, “que está crescendo”. De quebra, e é só um registro por alto, a compra de armas convencionais e co-produção de mísseis exportáveis, além de um programa nuclear para a construção de reatores. No campo diplomático, a Índia assegura veto russo na ONU e, reciprocamente, pratica abstenção no que for contrário a Moscou. Questões fronteiriças, de época imemorável, incluem a China e dançam ao sabor da música.
A guerra econômica interna ainda cado de têxteis, dos independentistas contra os estrangeiros. O agronegócio não fica de fora. Nos círculos políticos, o Partido do Congresso faz sombra, pensando em enfrentar o Bharatiya Janata, no poder. Um tanto dúbio em relação ao liberalismo, o partido, e também Modi, vinculam-se a uma organização de direita, paramilitar ao que consta, que prega uma Índia exclusivamente hinduísta. Quando ainda chefe de governo no estado de Gujarat, Modi angariou a reputação de administrador capaz. Seu ativismo o tornou influente no Bharatiya. Ao mesmo tempo fortaleceu o partido: foram duas vitórias varredoras, em 2014 e 2019. Orgulha-se o premiê ainda de um ganho, em 2014, com a visita de Xi Jinping – a primeira de um líder chinês em oito anos.
O momento indiano, agora sob rótulo nominal, importa tanto que mereceu dossiê de cinco páginas em Le Monde Diplomatique (edição abril). Destaca o crescimento do país, o mais rápido do planeta; ser já a terceira economia mundial, mensurável em poder aquisitivo; ser um país jovem, com população ativa de 970 milhões de pessoas. Não passou em branco a amizade entre Modi e grandes fortunas, com menção específica ao empresário Gautam Adani. Este é, pura e simplesmente, um dos beneficiados de Gujarat por investir nos grandes projetos do governo. Por extensão, “investe” também nas campanhas eleitorais de Modi.
Será a Índia o novo e moderno ateliê mundial? É a indagação que se faz o jornal – e nós do Brasil/Brics também.