Se existe algum consenso em torno da questão nuclear é o de que hoje vivemos o terceiro round de uma guerra fria, em desdobramento com nova corrida armamentista dual – militar e civil. Portanto ilimitada, responsabilizado o clima por exigir energia limpa. E cara: soma investimento nas tecnologias próprias ao uso dual, sobretudo na questão segurança. É a tendência, admite o Fórum Econômico Mundial, referindo-se a programas em curso já numa série de países.
“O risco de uma nova guerra mundial é extremamente alto… Uma política de paz ativa é um imperativo. Se cruzam a linha, a história termina e não haverá quarta Guerra Fria ou outra coisa mais”. Sergei A.S. Karaganov, dentre outros títulos membro do Conselho de Política Externa e Defesa da Rússia, criou uma doutrina sobre a Guerra Fria e de como suas conotações ideológicas, geoeconômicas e geopolíticas acabaram por gerar um objetivo geoestratégico [Russia Global Affairs. On a third cold war]. Daí a fase atual de modernização dos arsenais dos três top nucleares, embora sob a capa e pensamento de dissuasão. Já são nove as potências nucleares reconhecidas: os “mais” Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido, e os demais, bem aquém quanto ao total de armas, como Coreia do Norte, Índia, Paquistão, Israel.
As guerras frias. Foi a Revolução Russa de 1917 que demarcou o primeiro round, desembocando na II Grande Guerra, para desbancar a monstruosa ideologia nazista, e também por recursos territoriais e econômicos. O segundo round chega com a meta de controle dos armamentos, mas ao contrário assiste a um aumento gradual destes. Prevalece uma visão atrativa do padrão de vida americano democrático, em detrimento das antigas repúblicas soviéticas comunistas – às quais, a Europa sobretudo, fez vista grossa. E ficou tudo por conta de conflitos regionais, para desova das armas convencionais. Vitória americana. Nesta terceira Guerra Fria, vêm à tona atores até então um tanto retraídos de se expor. Segundo Karaganov, sob pressão dos Estados Unidos, a China volta-se ao Cinturão e Rota e aprofunda a parceria com a Rússia – política e econômica. É o Ocidente em luta contra a redistribuição de recursos econômicos, humanos e naturais que não o beneficiem.
Muitos tropeços neste século nuclear. Ao descumprimento ou abandono de tratados firmados, os países nucleares recorrem a doutrinas próprias. A China, em outubro 2023, relegou a política contrária ao ‘first use’, embora não oficialmente. Desde 1964, quando declarada potência nuclear, assumira unilateralmente o compromisso do ‘no first use’; foi o primeiro país a fazê-lo. Historicamente, as intenções da China têm sido evitar, e não provocar, um conflito nuclear. Nesses anos 1990, a abordagem de dissuasão resumia-se a considerações de segurança nacional. Volta-se agora para a postura de dissuasão estratégica: capacidade de absorver um ataque nuclear e retaliar com resposta nuclear. Desde a ascensão de Xi Jinping, em 2012, a China investe numa estrutura tríade: bases em terra, mar e ar, de onde lançar seus mísseis balísticos intercontinentais, capazes de atingir alvos no continente americano.
Em vigor desde junho 2020, a doutrina russa de dissuasão atualizou-se em março 2024. Armas nucleares, declara, são meios exclusivos de dissuasão; seu uso uma medida extrema a que o país seja compelido; seu uso uma resposta a ataque com armas nucleares, bem como outros tipos de armas de destruição em massa, contra o país e/ou seus aliados. E, definitivamente, em caso de agressão contra a Rússia, se em risco a própria existência do Estado. Os avisos, para muitos um alarde de ameaças, chegam, em fins de 2022, a um grito – a Rússia está pronta a usar de todos os meios disponíveis para proteger seu povo e sua integridade territorial. “Isto não é um blefe”. Assim o presidente Putin evoca o precedente de 1945: as bombas atômicas americanas lançadas sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.
Quiprocó dos tratados. De positivo nessa mixórdia mortal, uma redução quantitativa quanto às ogivas em estoque, desde a crise dos mísseis Cuba-Estados Unidos, 1962. Hoje somam 9.585, segundo o Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo, Livro do Ano 2024 [sipri.org]. No topo da lista: Rússia (4.380), Estados Unidos (3.708), China (500), França (290) e Reino Unido (225). Bem aquém para os outros: Índia (172), Paquistão (170), Israel (90 declaradas, há estimativas entre 100 e 200) e Coreia do Norte (50). O foco de modernização, agora, é qualitativo, haja vista os mísseis lançadores hipersônicos. Quanto ao Irã, tem tudo para ter, se é que já não tem, a bomba. Obceca a Casa Branca desde os anos 1970, da Revolução Iraniana e da crise do petróleo, e assombra Israel.
Firmados a partir de 1925, estão em vigor 35 acordos de controle e desarmamento. O último data de 2017 (proscrição das armas nucleares, TPNW), mas apenas 68 países o ratificaram. Assim, dia a dia torna-se mais complexa a dinâmica de desarmar, controlar e deter a proliferação. O ano 2023 deixa marcas. Há passos modestos e inócuos no recuo aos controles. Em fevereiro, a Rússia deixa o New Start – tratado de 2010 para reduzir armas nucleares estratégicas ofensivas; em março, acerta com a vizinha e aliada Bielorrúsia ali manter ogivas táticas. Terá sido efeito da decisão dos Estados Unidos, em janeiro, de não o certificar? Ainda seguindo o rastro de Washington, em novembro 2023 Moscou revoga a ratificação do Tratado Abrangente de Proscrição dos Testes Nucleares, CTBT, mas mantém presença ativa nas tarefas da Organização do Tratado. Os Estados Unidos nunca o ratificaram, embora em aberto desde 1996. Quanto ao controverso Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, INF, “morreu” faz cinco anos. Assinado em dezembro 1987, Mikhail Gorbachev o saudou como um marco para a desmilitarização da vida humana, e Ronald Reagan como o início de relações que permitiriam abordar outros assuntos urgentes.
Nos Arquivos Russos 1868, encontram-se ‘Algumas Palavras a Propósito da Guerra e Paz, do conde Leon Tolstoi. História os fatos das guerras napoleônicas 1805-1812. “Mas como se mataram uns aos outros milhões de homens? Quem lhes deu essa ordem?” Fatalidade, diz, que rege a História. Mas também a lei psicológica, que delimita o domínio do livre-arbítrio e da dependência a outras vontades que não a própria. Limites muitíssimo difíceis de fixar-se.