Desejo de mudança ou ato de não aceitação?

Ao abordarmos temas como a autocobrança, o desejo de mudança e a aceitação pessoal, não pretendemos apresentar ideias já suficientemente conhecidas por si só, mas refletir sobre suas causas e os motivos que justificam sua difusão na sociedade atual. Nosso argumento é construído sobre parâmetros racionalistas cristãos, portanto, de caráter transcendente, que nos fornecem possibilidades inesgotáveis de renovação e ampliação de perspectivas. Tal é, precisamente, o autêntico valor desses conteúdos. A profundidade e o vigor de sua mensagem indicam-nos a existência de uma realidade para além do mundo aparente, capaz de transformar a existência de todo aquele que não se feche em si mesmo.

É importante que se faça uma contextualização para demonstrar que, na maior parte das vezes, as emoções e os sentimentos que circundam a culpa geram complexos e traumas, passando pela angustia e a insegurança. Trata-se de um problema com muitas nuanças e conexões, que tende a se disfarçar, atualmente, sob o rótulo de autocobrança, em nosso entendimento.

Historicamente, os mais diversos transtornos emocionais e mesmo psíquicos fundamentam-se no sentimento de culpa. Não obstante as transformações sociais ocorridas sobretudo nos últimos dois séculos, grande parte da humanidade traz arraigada em sua estrutura psicológica a culpa que lhe foi inculcada no passado de forma extremamente eficaz por instituições, que exigiam um moralismo rigoroso que nem sempre estavam dispostas a praticar.

A subjetividade confere ao sentimento de culpa uma importância, na maioria das vezes, indevida. Dessa forma, algumas pessoas com dificuldades em lidar com as próprias emoções entram em processo de excessiva cobrança como um mecanismo compensador de suas frustrações e inseguranças.

Se, por um lado, o sentimento acentuado de culpa pode ensejar a elaboração de processos doentios, a negação total da culpa e sua desconsideração produz, por outro lado, os mais diversos padrões compulsivos. Quando o ser humano procede em moldes de insensatez, buscando despojar-se de todo e qualquer sentimento de culpa, acaba por negar a essência de sua própria condição humana, deixando de assumir as consequências de seu livre-arbítrio e desprezando seu senso de responsabilidade.

Ao dedicar-se, de antemão, a uma vivência totalmente despojada de reflexão crítica, a pessoa assume uma atitude de alienação, tão preocupante como a daqueles que se cobram excessivamente. Não há dúvida de que, mantendo-se equilibrada, a pessoa estará em melhores condições de efetuar uma autoanálise, sem exageros e afetações.

A elaboração de uma resposta que envolva conteúdos tão importantes e tão significativos para a vida prática dos seres humanos não deve consistir apenas na reunião de disposições e estudos relativos a determinado assunto que se queira abordar. Exige um trabalho mais amplo e criterioso, subordinado sempre à perspectiva espiritualista, que permite uma visão mais apurada e global. Nesse sentido, antes de prosseguirmos com a resposta ao tema, faz-se necessário introduzir uma nova questão: como lidar com a culpa sem perder o amor-próprio? É preciso que a resposta passe pela necessidade premente do autoconhecimento e do entendimento do real sentido da vida. Ao despertar para a espiritualidade, o ser humano aprende a lidar com a culpa de outra maneira, sem cobrar duramente de si, muito menos de seu semelhante.

Há duas formas clássicas de reação ao sentimento de culpa. A primeira é a entrega total ao trabalho, em que a pessoa se deixa absorver excessivamente pelas atividades laborais, comprometendo-se, fantasiosamente, a não errar mais, o que conduz à inflexibilidade e à improdutividade do processo criativo. A segunda consiste em implorar aceitação. Nessa situação, a pessoa anula sua própria personalidade com a finalidade de ser incluída em determinado grupo. Tais atitudes causam graves prejuízos à autoestima e ao amor-próprio, mas ambas encontram solução eficaz pela via do esclarecimento espiritual, que permite ao ser humano enxergar que as falhas não devem ser compensadas nem pelo trabalho duro e extenuante nem pela humilhação e consequente negação de seu próprio valor e de suas próprias características.

É importante salientar que motivação e autocobrança são conceitos distintos. Motivar a si mesmo constitui uma atitude muito positiva que gera alegria e não partilha tensões e conflitos internos. Uma relação absolutamente particular liga a pessoa e o processo criativo ou produtivo. Com o efeito, o trabalho, sempre sem excessos e nos limites da dignidade humana, constitui um dos principais termos de referência de uma sociedade que se fundamenta em valores ético-morais. O contributo que a atividade metódica e disciplinada pode oferecer à realidade humana é precioso e, sob inúmeros aspectos, insubstituível.

Há certas formas de olhar a vida e mesmo de responder a questões que surgem naturalmente de nossos estudos espiritualistas proporcionados pelos ensinamentos do Racionalismo Cristão. Trabalhamos sempre prazerosamente, com o objetivo de inspirar as pessoas ao estudo de si mesmas, e a fim de conscientizá-las da realidade espiritual que tudo sustenta e movimenta, para que ponham em prática na vida cotidiana os conteúdos que abordamos sistematicamente. Não se trata de uma forma de isolamento nem da adoção de prática ritualística, mas de seguir preceitos elevados e nobres que permitem organizar os elementos que configuram a vida.

A necessidade de plenitude e realização do ser humano encontra razão em sua dimensão espiritual; é através dela que se manifesta a vocação para o aperfeiçoamento. Sendo assim, a autocobrança não deve ser confundida com o desejo de transformação, uma vez que este se encontra na própria consciência, sendo ativado pela força de vontade. Na realidade, é preciso estimulá-lo positivamente e cada vez mais, a fim de que o ser humano se realize em todas as suas dimensões e possibilidades.

É indiscutível que o conflito se estabelece sempre que a pessoa condiciona sua realização interna a fatores externos, e não à paz advinda de uma consciência tranquila, que não depende de artifícios ou elementos fora dela mesma. Assim, a experiência da vida demonstra que, muitas vezes, diante das mais desfavoráveis circunstâncias, a pessoa encontra mais facilidade em descobrir em si mesma os mecanismos de defesa, que são seus atributos e faculdades espirituais, com os quais poderá superar os desafios da vida. Em última análise, tais desafios são sempre internos.

O que se evidencia numa vida na qual a espiritualidade é a referência mais importante? Primeiramente, amplia-se a visão da realidade e, por consequência, surge uma personalidade forte e dinâmica. Paulatinamente, à medida que esta referência se torna parte do ser – isto é um princípio a ser vivenciado – descobre-se a inutilidade da autocobrança e a falta de sentido da não aceitação. O ser humano passa a concentrar suas forças no aperfeiçoamento do caráter, no auxílio aos semelhantes, enfim, na prática do bem – tudo de forma espontânea e natural. A cada dia tem a oportunidade de amadurecer espiritualmente.

A consciência da imortalidade da alma põe por terra todo impulso à não aceitação e à manifestação do complexo de inferioridade, tão presentes em nossa sociedade. Imenso é o poder dessa verdade, a qual, uma vez reconhecida, liberta os seres humanos das pressões do cotidiano, das pseudopreocupações, das urgências sem sentido e das manipulações doentias, permitindo, ao mesmo tempo, que todos se concentrem no que é, de fato, essencial.