Era uma vez um filósofo e sua ‘obra monumental’ – 2

História do racionalismo – 136

A filosofia da Era Moderna teve duas figuras dominantes:  René Descartes (1596-1650) e Immanuel Kant (1724-1804), que é tema deste artigo e do anterior. Descartes é o pai da Filosofia Moderna, da qual Kant é o apogeu. Do século XVII ao XVIII, domina o espírito cartesiano, isto é, de Cartésius, sobrenome latino de Descartes; e do século XIX ao XX prevalece o espírito kantiano.

Ganham especial destaque na obra de Kant (chamada também “kantismo” e “criticismo”) a forma rigorosa e analítica de fazer filosofia, bem como a capacidade de refletir sobre questões fundamentais da vida humana. Para nosso filósofo, o maior direito da humanidade consiste em ser racional. “Logo, defender um bom conceito de razão é defender o direito básico da humanidade.” 

Em certos aspectos, Kant assemelha-se a Sócrates. É tal a influência do filósofo alemão no desenvolvimento do pensamento filosófico que ela se compara à exercida pelo filósofo grego e à exercida por Descartes.

Um grande X. A Filosofia Moderna, segundo um estudioso, pode ser representada por um grande X. No centro desse X está o kantismo, sendo os dois braços superiores o empirismo e o racionalismo, que convergem para Kant, e os dois braços inferiores, o idealismo e o positivismo do século XIX, que derivam de Kant.

Torna-se possível, portanto, mostrar em breves linhas a formação e a evolução do mundo moderno. Ele surge com o advento destes dois históricos e decisivos acontecimentos: o empirismo e o racionalismo. O Iluminismo, que é a síntese prática e divulgadora dessas duas correntes da Filosofia Moderna, é a causa maior e imediata da Revolução Francesa, da qual decorre a civilização contemporânea; e o kantismo, que, por sua vez, é a síntese filosófica e especulativa do movimento empirista-racionalista, é a causa do pensamento contemporâneo.

Assim, a obra de Kant não é, em sua essência, o oposto do racionalismo e do empirismo; é, isto sim, desenvolvimento e tentativa de retificação de ambos.

Independência da razão. O criticismo é, também, a continuação do esforço bicentenário do movimento racionalista da Idade Moderna para promover a independência da razão humana e, por fim, libertá-la da influência religiosa, do misticismo e do obscurantismo teológico. Esforço esse que culminaria com o advento do Racionalismo Cristão, filosofia espiritualista implantada no Brasil, nos alvores do século XX, por Luiz de Mattos e Luiz Tomaz.  

Segundo o estudioso acima citado, escrever uma importante obra filosófica teria sido tarefa impossível para Kant sem a marcante e decisiva influência de grandes e basilares pensadores da Filosofia Moderna, o que ele realmente já conseguira ao estudar, a fundo, as obras de Descartes (sem o qual o kantismo não teria sido possível), Jean-Jacques Rousseau, John Locke, George Berkeley, Thomas Hobbes e David Hume. Sim, foi neles que Kant se inspirou para escrever sua obra essencialmente criticista, conhecida também como “Síntese Monumental“.

Velho tema. Só depois de deter-se em aprofundado estudo e acurada análise das históricas obras de seis “grandes e basilares pensadores” da Idade Moderna é que Kant se sentiu devidamente abalizado a fazer o que fez – escrever o que viria a ser qualificado de “Síntese Monumental“, ou seja, o conjunto de obras do filósofo, dentre as quais a Crítica da Razão Pura, a Crítica da Razão Prática e a Crítica da Faculdade de Julgar, as três mais conhecidas, ou badaladas. E sabe quem fazia parte dessa honrosa lista de seis “grandes e basilares pensadores”? Era ninguém menos que Descartes (sem o qual o kantismo não teria sido possível), Jean-Jacques Rousseau, John Locke, George Berkeley, Thomas Hobbes e David Hume.         

A nosso ver, a essa altura já não causava estranheza o fato de Kant, na elaboração de sua obra, ter adaptado o pensamento filosófico da Idade Moderna aos princípios da doutrina espiritualista. Pelo que se sabe, nenhum filósofo, então ou até hoje, teria “estranhado” essa iniciativa de Kant, e alguém a teria considerado um histórico e importante feito de um importante e histórico filósofo. Feito do qual resultaria, aliás, sua revolucionária teoria do conhecimento.

Em reforço a tais considerações de cunho espiritualista, apraz-nos expor mais algumas, agora da  autoria de Kant. De sua obra Crítica da Razão Pura, transcrevemos:

“A vida é devidamente inteligível, não está sujeita às mudanças do tempo, não começa no nascimento nem finda na morte. Se pudéssemos nos ver, tais como realmente somos, nós nos veríamos num mundo de naturezas espirituais, com as quais não começou quando nascemos nem terminará com a morte do corpo.” 

De outra obra de Kant, História Geral da Natureza e Teoria dos Céus, citamos:

“Diante da duração infinita da alma imortal, através da infinidade do tempo, que nem mesmo a sepultura interrompe, deve a alma”, indaga o filósofo, “permanecer para sempre ligada a esse ponto do mundo-espaço, a Terra? Jamais participará da contemplação mais aproximada das outras maravilhas da Criação?

“Quem sabe se não há a intenção de que ela tome conhecimento, bem de perto, algum dia, não só desses distantes globos do sistema cósmico como também da excelência de suas instituições, que já a essa distância provocam nossa curiosidade?

“Talvez, justamente com esse propósito, alguns globos do sistema planetário estejam se preparando como novo lugar de morada, a fim de que os ocupemos depois de termos completado o período de tempo designado para nossa estada neste planeta. Os satélites que giram em torno de Júpiter não estarão, um dia, brilhando sobre nós?”