Em 20 de janeiro 2022, a junta do Boletim de Cientistas Atômicos determinou acertar o relógio do juízo final em 100 segundos para a meia-noite, pelo terceiro ano consecutivo. Em 24 de janeiro 2023, um frêmito: o relógio está agora em 90 segundos para a meia-noite. Abeira-se às portas o fim da civilização. Três fatores de peso maior antecipam esse destino, dos quais dois nem mesmo surpreendem (clima e ameaça crescente de guerra nuclear), mas o terceiro abala. Trata-se da “ecosfera corrompida da informação, que solapa o poder decisório racional”. A influência da mídia concentrada passa a ser vista como ameaça existencial; a política digital deve, mais que nunca, reforçar a responsabilidade social em apoio da democracia.
O Brasil não está só, nessa busca frenética para regrar o poder digital de desinformação e falsa informação – e danos consequentes. Há dezenas de países assolados pelo inferno verbal. E uma grita pela criação de um organismo independente, investido de apoio multipartidário, para operar sob regras e autoridade claramente definidas. Uma ação legal contra a torrente das sandices mascaradas de “censura” ou “interferência em decisões corporativas”. Noam Chomsky, considerado o maior linguista moderno, admite (entrevista à Truthout, janeiro): “É um truísmo que o mundo esteja em estado funesto… O planeta chegou mesmo a um ponto de ruptura”. Seria preciso enfrentar, diz, entre os desafios de nosso tempo, os segredos das palavras e a necessidade urgente de mudança social.
Era pós-verdade. Com as desculpas de Marshall McLuhan, invertemos o princípio; agora, a mensagem é o meio. Da lógica linear do discurso, os fatos vão-se afastando, confundindo as mentes. Cada um avalia, interpreta, aceita ou rejeita, passa adiante o que convém a seu próprio eu, afasta o que não gosta, porque não entende. Em que ponto ficou a verdade em si? O processo desemboca no controle da mente, não mais dos fatos. No torvelinho de propostas, palpites, há quem diga que ingressamos na era da pós-verdade; a opinião pessoal, a ideologia, a emoção levam a melhor sobre a realidade dos fatos. Impacto nos regimes políticos, principalmente nas democracias, tensão permanente entre a livre expressão e um relativismo flagrante.
Lembram Manuel Castells e Décio Pignatari que a informação é o principal bem de consumo de nosso tempo. É consumindo que a burguesia forja e amplia seu repertório, com seleções sucessivas. “Mas a grande massa da pequena burguesia e das classes trabalhadoras também aspira ao mesmo fim”. Soa como se estivéssemos na sociedade capitalista da informação, segundo o professor Gabriel Cohn. Uma união “contraditória” da vertente do capitalismo, conhecida como sociedade de consumo, com a sociedade da informação.
Igreja do mercado. Continuamos apegados ao que o neurocientista Miguel Nicolelis chama a Igreja do Mercado (e seu deus do dinheiro) e ao Culto da Máquina. Duas “abstrações mentais”, que emolduram um caminho célere para transformar os seres humanos em “simples autômatos, totalmente controlados por um sistema político ditatorial e uma doutrina econômica divorciada da promoção do bem-estar”. O vício digital, diz, está mudando nosso cérebro. Tenta ludibriá-lo acenando com recompensa maior, “se deixar de expressar os atributos mais celebrados e únicos da condição humana”, quais criatividade, inteligência, intuição, discernimento e sabedoria. E mais: a compaixão, empatia pelo próximo, a busca de um fim benéfico comum. No final das contas, o que muda não é a comunicação, mas a sociedade.
Voltando ao relógio… A ameaça de guerra nuclear apresenta-se como um dos dois cenários finais do conflito na Ucrânia, conforme análise prospectiva de Futuribles Internacional. Compete com a destituição ou desaparecimento de Vladimir Putin. A análise “visualiza”, para esses desfechos, até 2025, duas alternativas: prolongamento do conflito, físico e cibernético, com escalada intensa e tomada de mais territórios pela Rússia (o não reconhecimento internacional levaria à guerra); volta ao status quo anterior a fevereiro 2022, deixando Putin isolado e enfraquecido. Fim da guerra e de Putin.
Limite a água. Quanto ao clima, o Instituto Potsdam e o Centro de Resiliência de Estocolmo alertam: dos nove “limites planetários” identificados até agora, o sexto – ciclo da água doce, ou verde, disponível para plantas – acaba de ultrapassar o marco. Junta-se, assim, à erosão da biodiversidade, às mudanças no clima e no uso do solo, a perturbações atmosféricas e oceânicas. Em miúdos, significa que o planeta tornou-se incapaz de absorver e compensar o impacto da atividade humana nesses limites. Os demais, resistindo, dão um tempo à atmosfera e biosfera. Mas agravam as crises humanitárias. Vinte dentre as mais prementes, só neste ano 2023, sendo a metade na África e duas na América Latina: Haiti e Venezuela.
“Será um pensamento utópico acreditar que o status quo possa ser desafiado e que um outro mundo é possível?” O próprio Chomsky acena com resposta positiva, ao sugerir mais esforços para trazê-lo à realidade – porquanto este mundo atual já não se sustenta. Existem iniciativas, principalmente quanto ao clima. O Green New Deal, por exemplo, considerado uma ideia boa, correta, para reduzir custos da energia renovável, embora haja críticas sobre as políticas exigidas. Recairão no mesmo processo de acúmulo de capital? Os Verdes europeus aderiram ao projeto em 2006. Nos Estados Unidos, o Partido Verde, que já apresentou candidatos ao governo de Nova York e à presidência, tenta sensibilizar o governo federal para conectar, e atacá-las ao mesmo tempo, as lutas em torno da mudança climática, racismo sistêmico e desemprego.
Democracia geral. Também em curso, a Internacional Progressista – chamado, em 2018, das forças progressistas para formar uma frente única – constitui-se um movimento de união por um mundo democrático em todos os sentidos. Iniciativa a partir do Movimento Democracia na Europa (do ex-ministro grego Yanis Varoufakis) e do Instituto Sanders (do ex-candidato à Casa Branca Bernie Sanders). Ecoou em Chomsky e uma plêiade dos que compartilham a visão de mundo possível, em países de quantos continentes existam. O Brasil faz-se presente com bons nomes, a exemplo do diplomata Celso Amorim e do ministro Fernando Haddad.
Neste mundo possível, voltado ao pluralismo, estruturam-se também alianças regionais, somando atitudes para desviar da enferrujada governança global. Na América Latina, sobressaem a Celac e Mercosul. Na Ásia, a Organização para a Cooperação de Xangai e o Aukus. No Oriente Médio, aliança contra o Irã envolve Israel, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e o Egito ditatorial. Há ainda os BRICS, grupo ao qual vêm aderindo mais e mais países, independente da região. Na Europa, continuam sendo as eleições o que marca mais as tendências ideológicas. Por toda parte, um combate de emancipação democrática.
De novo o relógio. Esperemos janeiro de 2024 em suspense para ver o deslocamento dos ponteiros; se o pêndulo, aos moldes das tendências atuais, gira forte para a direita ou dá um hausto de alívio à esquerda.