Tido como um legendário semeador de alertas, Daniel Ellsberg, ante tantas delongas no caso Julian Assange, fez soar o aviso em setembro 2020 (Democracy Now): “Se Julian for extraditado, será processado aqui e provavelmente condenado. Será o primeiro jornalista a sofrer tal, mas não o último. E o New York Times provavelmente não será o segundo, mas talvez o terceiro ou quarto (jornal). Logo, todo mundo está preocupado com este caso. Se Julian for enviado aos Estados Unidos para responder acusações levantadas contra ele – estas por ter feito… jornalismo – nenhum jornalista no mundo estará mais ao abrigo de uma pena de prisão perpétua aqui. Uma enorme parada em jogo, portanto. Este caso não é só a liberdade de expressão – a nossa está longe de ser perfeita; outras questões não menos, algumas mais. Mas é a perspectiva mesma da liberdade de imprensa no mundo inteiro; logo, da democracia, que está em xeque. Podemos pensar, talvez, que se trate de uma hipérbole; não é”.
Em dezembro desse mesmo ano, o autor Charles Glass dirigira um apelo ao presidente recém-eleito Joe Biden. Dizia que a ele se apresentava uma oportunidade histórica: demonstrar o compromisso do governo para com a Primeira Emenda, anulando o pedido de extradição de Assange. “A liberdade de Assange representa a liberdade de todos os jornalistas e editores, cujo trabalho é expor a criminalidade oficial e corporativa, sem temer a perseguição”. Em ano de novas eleições, crescem os apelos a Biden. Inclusive do governo australiano, para a volta de Assange a seu país natal. Uma nova oportunidade histórica? Há dois meses, por iniciativa bipartidária dos representantes Jim McGovern (democrata) e Thomas Masse (republicano), fez-se uma carta a Biden, destacando a importância de sustar o processo. Questionadas tanto a liberdade de imprensa quanto a credibilidade do país no mundo. Argumento: as acusações contra Assange são parte de uma alarmante tendência global
Argumento: as acusações contra Assange são parte de uma alarmante tendência global contra a imprensa livre. “Jornalismo não é um crime. O trabalho tem a ver com transparência, confiança e divulgar a verdade. Quando injustas (as acusações), todos sofrem as consequências. O que está em debate é muito para ficarmos em silêncio.” A carta lembra, ainda, que o Departamento de Justiça agiu corretamente em 2013, Biden na vice-presidência, ao declinar prosseguir com o processo por espionagem, admitindo que criaria um perigoso precedente.
Outra data do que será (mesmo?) a última audiência sobre a extradição, na Alta Corte de Londres, foi marcada para 20-21 deste fevereiro 2024. Um basta! Exílio, prisão, o furor dos círculos políticos americanos e da mídia tendenciosa. Perseguido como combatente inimigo, agente russo, criador de uma agência de fins políticos. Mas a WikiLeaks, segundo Assange inspirada nos Pentagon Papers de Ellsberg, tinha um objetivo: divulgar os bastidores dos poderosos, seus acordos ocultos, mensagens entre governos e seus diplomatas, enfim a realidade inacessível. Seu ano de glória: 2010. Um vendaval de documentos. Ano de reveses: 2011. Assange, já sob acusação de ameaça à segurança nacional, sofre pesado bloqueio financeiro e, em outubro, cessa as publicações para dedicar-se ao levantamento de fundos. Em junho de 2012 começa a saga do exílio, ao refugiar-se na Embaixada do Equador em Londres, até a prisão arbitrária em 2019, violando as leis de asilo.
Prisão “custe o que custar”. Ela custou bons milhões de dólares de ajuda financeira ao Equador. Vingança ou mal-entendido? Para a WikiLeaks, divulgar documentos vazados do Partido Democrata e da campanha Hillary Clinton não significaria apoio aos republicanos. Como defende a Freedom of Press Foundation, “o que quer que se pense ou fale de Assange, suas ações correspondem ao que os jornalistas fazem: ouvir as fontes, solicitar maiores informações, receber ou guardar informação classificada e publicar uma série”. Condena o preocupante uso crescente da Lei de Espionagem 1917, para deter ou punir o jornalismo da verdade. Por ironia, é o mesmo Trump da caça às bruxas de seu mandato que responde por 91 acusações de delito grave, até mesmo tentar reverter o resultado das eleições de 2016.
Desponta, no início desta década, outro “agente russo”, persona non grata oficialmente declarada pelo Departamento de Estado. Michael Chossudovsky, com um lastro de 13 livros publicados, a maioria sobre a globalização – da pobreza, do terrorismo, da guerra, da ameaça nuclear, da economia e finanças – é, na verdade, independente. Canadense, professor emérito (Economia) da Universidade de Toronto, fundador do Global Research Centre, sofre idêntica campanha de demonização, um continuum consagrado também pela falta de originalidade. Antes, quem não está comigo é terrorista; agora, quem não está comigo é espião russo.
Aproveitando o mote de Ellsberg (guerra do Vietnã) e Assange (guerras do Iraque e Afeganistão), cito seu livro de 2015, A Globalização da Guerra, que compõe um todo com as demais obras sobre o tema. Tem-se aí uma visão histórica do projeto hegemônico de guerras prolongadas sob o conceito de autodefesa. No prefácio, o próprio autor situa o leitor no contexto das operações militares e ações secretas de desestabilização de países soberanos, simultaneamente, nos quatro cantos do mundo. Uma segunda frente, econômica, mina os inconformados com sanções e transtornos financeiros e cambiais. São 12 capítulos em que se vão escoando: o modus operandi das intervenções militares, o jogo da ameaça nuclear, a guerra secreta antiterrorista (forjada com a criação de esquadrões da morte), o golpe de 2014 na Ucrânia para estabelecer um governo proxy, enquanto Israel invadia Gaza, onde em 2010 se descobriram jazidas de gás natural. Etc. etc.
Julian Assange pende da Justiça. Em novembro 2019, sete meses preso, receberia a visita de Nils Melzer, relator especial da ONU sobre tortura e tratamento cruel, inumano e degradante. Atestou: réu com extremo stress, ansiedade crônica, trauma psicológico. Le Monde Diplomatique o chama “indômito”. Irá obter o perdão e a liberdade, voltar à Austrália? Se extraditado, irá morrer nos Estados Unidos (pena de 175 anos). Daniel Ellsberg, absolvido em 1971, por seis votos a três, no caso Pentagon Papers, morreu em 16 de junho do ano passado, aos 92 anos. Deixa três livros que o redimem do trabalho de planejador presidencial da política nuclear (Eisenhower, Kennedy, Johnson e Nixon). Foi quando o feitiço virou contra o feiticeiro; tornou-se um adepto da paz e da liberdade de imprensa. Em 2006, ganhou o Right Livelihood Award, tido como o Nobel alternativo e, em 2018, o Olof Palme Prize. Quanto a Michael Chossudovsky, amarga a difamação, mas mantém seu site [globalresearch.ca] com tradução em 50 idiomas. Afora os 13 livros testemunhas de um império em ruína moral.
Tudo vale a pena, se a alma não é pequena. (Fernando Pessoa).