Nem bem começou

“Simón Bolívar morreu no dia 17 de dezembro. Em outro 17 de dezembro, há onze anos, tinha fundado a Grand Colombia, que nasceu da fusão da Colômbia e da Venezuela e somou depois o Equador e o Panamá. A Grand Colombia morreu com ele”. (Eduardo Galeano, Memória do Fogo, ano 1830).

Vida e obra de Bolívar atingiram dimensões míticas entre os povos do continente. Um homem ingovernável, insubmisso. Os seguidores o seguem, com estilo próprio: Hugo Chávez, Nicolás Maduro. Um único professor e tutor o influenciou, Simón Carreño Rodríguez, excêntrico discípulo de Rousseau, que o introduziu no mundo do pensamento do século XVIII, com efeito perene. De Simón Rodríguez, Bolívar ouviu que nunca se cumpriram as leis nas colônias espanholas da América; o discípulo cinzelou a ideia de Constituição com fervor. E deu sentido à vida com fé na independência e liberdade. De Rousseau e Montesquieu, Bolívar guardou o pensamento político; de Voltaire, a filosofia de vida. Mais um sopro do cientista alemão Alexander Humboldt: acredito que as colônias espanholas estão amadurecidas para a independência. Em viagem a Roma, no topo do monte Sacro, fez o voto de libertar seu país. O movimento de independência na América espanhola desamarrou um ano após retornar da Europa, 1807.

Em março 1811, uma Venezuela em fermento acabaria por proclamar sua independência, em 5 de julho. Começa a germinar a Revolução Bolivariana, que chega a 1819. O “engrandecimento excessivo da América libertada” desagrada os Estados Unidos e, por conspiração desvinculados, os países da Grand Colombia seguem caminhos próprios. Em fins do século XX, a Venezuela desperta para o chavismo: “A democracia representativa dos últimos 40 anos perdeu-se, é uma farsa”. Foram 14 anos, de 1999 a 2013. O país, então como agora, é a República Bolivariana da Venezuela.

Soberania. Chávez reacende a ideologia de defesa da soberania nacional segundo o princípio de não intervenção, integridade, liderança forte, consultas populares. Resiste à noção, em voga desde fins da guerra fria, de que retrocessos no processo democrático são questões de âmbito hemisférico. Pretende ser um contrapeso à dominância dos Estados Unidos. À parte Cuba, a Venezuela bolivariana é o pais da América Latina que mais se desviou da aceitação regional à economia de mercado e princípios da democracia liberal, conforme destacam Michael Shifter e Vinay Jawahar em Current History, fevereiro 2005. “É questionável… se a rédea curta de Chávez nas instituições venezuelanas e a crescente presença e papel político dos militares possam ser vistos, particularmente, como reflexo de uma orientação ‘esquerdista’. Em vez disso, insinuam, “há uma tentativa consciente do governo Chávez em consolidar controle e acumular poder”.    

Instilado pela revolução social do século XX, o historiador, autor e professor (Universidade de Columbia) Jacques Barzun publicou, fim dos anos 1990, um ensaio sobre o teorema da democracia. Dizia: “A democracia não tem teoria unificada. O cerne da questão é a engrenagem de governo, porque é como as rodas giram, e não a teoria, que faz um governo livre ou não”. Às dúvidas que se projetavam, respondeu com um seco “a democracia não se exporta”. Segue: “Não é uma ideologia, mas um desenvolvimento histórico instável, ou caprichoso”. Assim, terá assumido muitas formas, e usado muitos estratagemas, para atingir a meta ilusória de liberdade. Hoje, as formas de democracia estariam num estado de fluxo com duas correntes em conflito: maiores direitos e maior liberdade. Pressão sobre as instituições e estresse dos cidadãos. Para Barzun, história, condições, hábitos, religião, base econômica e educação do povo devem ser levados em conta antes de se estabelecer a máquina de governo. Nenhuma regra ou meios aplicam-se universalmente.

Oposição. Na sucessão bolivariana, Nicolás Maduro adota posturas condizentes. Enfrenta a mesmice dos pretextos contra os resultados eleitorais, rotineiramente postos em causa. Intervenções, incomodativas, exacerbam o diapasão das ruas, que já sofrem com as circunstâncias econômicas e as punitivas sanções dos Estados Unidos, de forte impacto na indústria petrolífera. Essequibo retorna à pauta. A rédea do governo encurta. Violações à lei e processos engordam a lista de presos. Atraso no progresso, mercê da máquina em disfunção. Lealdades em teste, as forças armadas se fazem visíveis. E também as forças populares.

O açodamento da oposição contra os resultados anunciados atiça o pensamento de golpe. Afloram indícios. A revista The Economist divulga que, nos bastidores, se negocia o afastamento de Nicolás Maduro. Relatório da missão dos 17 observadores do Centro Carter (11 países) diz, já na abertura, que a eleição na Venezuela não atende aos padrões internacionais de integridade. A mesma conclusão de sua assessora sênior, Jennie Lincoln, segundo entrevista [https://www.npr.org/2024/08/06/nx-s1-5064231/the-integrity-of-the-venezuelan-presidential-election-is-under-scrutiny] em que reconhece: as autoridades eleitorais honraram as garantias de acesso total ao processo, liberdade de movimento e de falar com o povo e a imprensa. “O sistema eleitoral venezuelano é muito bom”. Há detalhes da missão (um mês no país) e impressões pessoais sobre “completa falta de transparência”, bem como sobre as celebrações de vitória e os violentos protestos da oposição.

Paper imediato às eleições parte do Centro Wilson em Washington, Venezuelan Desk, [www.wilsoncenter.org/lap], assinado pela venezuelana Tamara Taraciuk Broner. São cinco páginas sobre “a transição democrática ainda ao alcance”. Traz um destaque precioso: “O regime precisa legitimidade internacional, em parte para acesso a mercados-chave, e estes resultados eleitorais não lhe dão isso”. A “fraude eleitoral” é aclamada como “ponto de partida para uma inevitável negociação política que se realizaria de agora a janeiro, quando o próximo governo deve assumir”. Seriam negociações complexas com uma “oposição política unificada e seus aliados internacionais, inclusive Estados Unidos, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, México e Uruguai, bem como Noruega, Alemanha, Espanha, Suíça e Reino Unido”. Enfim, a dita transição política deve impor o modelo democrático para opor o “socialismo do século XXI”, bolivariano. É disso que se trata.   

Simón Bolívar guerreiro significa glória e poder na conquista de liberdade. A ferro e fogo. Deixou marca de lança. E foi-se. Hugo Chávez estadista morreu em 2013, mas o chavismo vingou. Nicolás Maduro estadista preserva o legado. Qual está à prova? A revolução bolivariana ou a extrema-direita capitalista?