No arquipélago americano

No arquipélago americano
Muito barulho. Ocorre sempre que há uma troca de liderança nos países envolvidos, e/ou sempre que o governo de Pyongyang realiza um teste nuclear. O ruído faz-se ouvir, maior ou menor, conforme a réplica, ou comportamento, de cada um.
No quadro de agora, dois ‘guerreiros’ (Estados Unidos e Coreia do Norte); um aliado americano com rígida política defensiva (Japão); uma China ambígua, com interesses muito próprios (em casa e na península); o vizinho sul-coreano com governos que ora mordem, ora assopram; a União Soviética, na periferia, mas com viés negociador, e voz nas Nações Unidas.
Assim, é de pessimismo o ambiente, com o programa nuclear norte-coreano em progressão e a perseverança norte-americana de impedi-lo. Sob sanções internacionais desde 2006, a Coreia do Norte sofreu, em março passado, imposições ainda mais severas da ONU, em resposta ao quarto teste nuclear, em janeiro. Mais um ou dois ocorreram, desde então.
As medidas punitivas já passaram, há muito, as preventivas. Desde a era George Bush, que incluiu a Coreia do Norte no ‘eixo do mal’, ao lado de Irã e Iraque. Antecipam, talvez, que o atual presidente, Donald Trump, venha a romper a ‘estratégia de paciência’ do sucessor de Bush, Barack Obama. Ou o imobilismo diplomático, que mereceu comentário, um tanto cínico, do professor e autor Bruce Cumings, ao se referir às duas derrotas militares americanas no Leste asiático (Coreia e Vietnã) e outras duas no Oriente Médio (Afeganistão e Iraque): “Talvez a política americana faça melhor não fazendo nada”.
Coreia do Norte A declarada hostilidade ao programa nuclear não a deteve. Nos primórdios, em 1995, acordo sob a presidência de Bill Clinton previa desmantelar os reatores de produção e reprocessamento, em troca de duas centrais de água leve e uns trocados. Depondo na Comissão de Relações Exteriores do Senado, em debate sobre o acordo (25 de janeiro 1995), o diplomata e ex-vice-secretário de Defesa, republicano, Paul Wolfowitz já lhe augurava vida curta, por falta de embasamento mais amplo. E riscos ao Tratado de Não Proliferação. Recomendava, desde então, mais e maiores pressões econômicas.
Sempre recusando inspeções especiais da Agência Internacional de Energia Atômica, a Coreia do Norte ganhou tempo até 2002, quando o presidente Bush declarou o acordo “caduco”.  De 2006, quando do primeiro teste nuclear, chega a 2017 com cinco testes nucleares e progressos – ainda duvidosos – nos mísseis balísticos de longo alcance. Os lançamentos visam a desenvolver e tornar operacionais, miniaturizar, as ogivas nucleares. De 1984 a 1994 (Kim Il-sung), contam-se 14 ou 17 testes e lançamentos. Daí a 2011 (Kim Jong-il), 13 testes e mudança de local. Kim Jong-un aumentou o número de ensaios, e os locais de teste.
Experts, como o cientista nuclear Siegfried Hecker, já acham plausível a até agora fantasiosa ideia de os norte-coreanos disporem de uma ogiva nuclear capaz de atingir os Estados Unidos, em pouco mais de uma década.
Pioram as tensões. Entre manifestações militares, provocações e ameaças, corre-corre diplomático. Diálogo, nada; abordagem punitiva. A liderança norte-coreana, chamada de irracional e imprevisível, contudo, segue uma linha firme e definida: o país quer que o vejam como potência independente, com garantias de segurança. Quer reconhecimento internacional. Prosseguem, também, medidas – que alguns tomam por reforma – para viver melhor.
Outra constante, segundo o jornalista Philippe Pons (Monde Diplomatique): afirmação de independência nacional. Patriota visceral, Jong-un eliminou toda e qualquer perspectiva de oposição interna, com ajuda da pregação nacionalista e da luta contra a adversidade (geografia desvantajosa, com desastres naturais e secas). Ao assumir as rédeas do país, quase dez anos antes do programado, por causa da morte do pai, Kim Jong-il (coração), assegura continuidade e estabilidade. Para os norte-coreanos, o prestígio da nação está na imagem de seu líder – a dignidade nacional. Mesmo que o Ocidente os menosprezem, por ignorância de uma cultura de crença arraigada.
Coreia do Sul Em Seul, o inverso. Impeachment e destituição da presidente corrupta Park Geun-hye anteciparam as eleições. Deve assumir a antítese da predecessora: o democrata Moon Jae-in. Chega em boa hora. Defende a retomada do diálogo entre os ‘Seis’, bem como negociações sobre o controverso sistema antibalístico americano no país. Afinal, a Coreia do Sul fica a 50 quilômetros das baterias norte-coreanas. Perto, também, de bases americanas em Okinawa, Japão.
Para o governo, é uma dor de cabeça perene posicionar-se entre os Estados Unidos e a China, fonte e renda de um comércio maior que com o combinado Estados Unidos e Japão. Houve tempos de euforia: a política de ‘sol nascente’ de Kim Dae-jung, em 1998, que, apesar do cunho propagandístico, lhe valeu o Prêmio Nobel de Paz. Já em 2008, a hostilidade aberta de Lee Myung-bak empurrou mais a Coreia do Norte para a China, inclusive ao aderir à Iniciativa de Segurança contra a Proliferação, ditada pelos Estados Unidos, claro. No outono boreal de 2010, a península foi agitada por violência incontida, na disputada fronteira marítima entre as duas Coreias. A tal ponto que, em julho 2011, Coreia do Norte e Estados Unidos iniciariam conversações diretas, em Nova York. Vã aproximação.
China e Japão A Pequim em nada e por nada interessa conflito na região. De saída, problema palpável: uma onda de refugiados para a zona financeira de Yanbian, onde vive minoria de origem coreana. Tampouco a reunificação da península, sob a égide de Seul, aliado americano.
Talvez, por isso, o presidente Trump insista, veladamente, em fazer de Pequim um mediador – apesar das diferenças de abordagem. O presidente Xi Jiping, por exemplo, relega a segundo plano o programa nuclear norte-coreano. Melhor, acredita, incluí-lo em negociações globais. Gostaria de ver a Coreia do Norte evoluir economicamente e integrar-se ao desenvolvimento regional, reduzindo, assim, o risco de desestabilização.
Há outros motivos, opacos, dizem os analistas. Ganhos em empreendimentos, por exemplo. Mas a tônica é uma só para Pequim e Tóquio: a desnuclearização da península. Que cada qual assuma suas responsabilidades, prega o presidente Xi Jinping. Sem boa vizinhança com Pyongyang, o governo japonês (ora sob Sinzo Abe) considera o programa nuclear norte-coreano uma ameaça, extremamente grave, à região.
Rússia Opinam autores, do porte de Dmitri Tremin (Current History), que a Rússia, por visão estreita de Washington, tornou-se ator irrelevante no palco do Pacífico asiático – hoje a região mais importante do mundo. A geopolítica desmente: extensa fronteira com a China e outra, se bem menor, com a Coreia do Norte. Neste “século da América no Pacífico”, inovam-se ou renovam-se alianças, ali, onde os Estados Unidos mantêm 800 bases, num “arquipélago de domínio supremo”. Expressão usada por Bruce Cumings, ao comentar: só a Coreia do Norte desafia os reclamos dessa presença legítima, oriunda das sequelas da Segunda Guerra Mundial.
A Rússia estaria, hoje, numa acanhada periferia no Pacífico, com a ascensão da China. Por isso, e é Tremin quem o diz, seu impacto se concentrará na diplomacia. Em três ‘quase triângulos’ dos quais partilha: com Estados Unidos e China; Índia e China; China e Japão. “A velha ideia de usar as conversações dos ‘Seis’ sobre o programa nuclear da Coreia do Norte, para estabelecer uma estrutura de segurança no Nordeste asiático, exige uma estratégia de visão avançada e cuidado na atribuição de papéis”, acredita. Moscou não seria um ator central nesse contexto, porém ativo e independente.
Muito barulho. Mas ainda sob controle, como tem sido em tantas décadas. A menos que a decantada irracionalidade, de uns e outros, passe da ficção ao real. Como a cada ação corresponde uma reação, aonde a corrente levaria?
Clecy Ribeiro
Jornalista, professora das Faculdades Integradas Hélio Alonso, RJ