O carnaval voltou alegre, lindo, rico… deslumbrante. Era o que se esperava após dois anos de forçado recesso. Mas que carnaval? Não foi aquele que arrebatava os indecisos e os atirava no meio o bloco de sujo, levando-os a entregar-se à cantoria, aos passos ritmados, esquecidos da vida dura que os aguardava após a quarta-feira. Foi um carnaval seletivo. Já há muito se dizia que o pobre estava sendo excluído do carnaval, em favor de uma elite financeira que se misturava aos turistas nas arquibancadas para acompanhar as apresentações das escolas de samba.
Esse afastamento recebeu o estímulo da badidagem que a Polícia não consegue extinguir ou, ao menos, reprimir. Ao observador parece ocorrer uma das duas circunstâncias: ou as ações para reprimir o tráfico de drogas ilegais e a ação as milícias estão mal organizadas e executadas, ou as autoridades entraram para o esquema do ‘deixa ficar para ver como é que fica’.
Antes, quem não podia comprar fantasia do bloco de sua rua, de seu bairro, lá ia puxando a corda que delimitava a área dos sambistas no meio do povo. Com a supressão corda, passou a empurrar alegorias, já com camisetas oferecidas pelas agremiações. Muitos se mantêm nessa condição. As escolas de samba, com recursos próprios ou patrocinadas, vestem a ala das baianas e os ritmistas, e garantem a fantasia de alguns destaques e uns poucos membros das comunidades onde surgiram. Maiores gastos são com o pessoal dos barracões e materiais para a montagem dos carros alegóricos.
Tais carros alegóricos são construídos para serem vistos e admirados do alto, o que só é conseguido por quem está na arquibancada. E quem está na arquibancada? Quem pagou uma nota preta pelo ingresso. Pobre não vai para a arquibancada, por isso não aprecia as alegorias. Daí que aqueles que não são agraciados com uma fantasia pela agremiação ficam de fora: frustrados, não veem a escola desfilar, não veem seus parentes desfilando, o que por certo lhes intensificaria o orgulho. E assim o povão vai sendo afastado de um dos mais preciosos bens de que há tempos desfrutava.
Este ano, com a festa retardada por mais dois meses por causa da covid, foi dada a patata definitiva: proibiu-se o carnaval de rua, os blocos, alijando os foliões de sua tão aguardada fonte de prazer. As autoridades que decidiram abrir a porteira ao coronavírus, como esta coluna registrou na edição de abril, mudaram de ideia e resolveram reduzir o risco de contaminação, ou foi apenas uma medida para tolher a alegria da massa, punindo-a por ser pobre?
Ah, céus! E terras! Que desculpa mal engendrada! Evitar aglomeração. Na arquibancada não tem aglomeração? Nas festas em recinto fechado não tem aglomeração?
Para “garantir a ordem” estiveram nas ruas a Polícia Militar e a Guarda Municipal, além de bombeiros e policiais civis. Tanta gente empenhada em evitar a formação dos blocos nem se deu conta de que uma menina estava prestes a ser esmagada por um carro alegórico desgovernado. E o acidente ocorreu. Melhor que estivessem atentos ao que realmente representava perigo. Segurança de pessoas nas ruas é problema do estado, pelos seus orgãos, não de particulares, como a escola de samba a qual pertencia a fatídica alegoria. Essa segurança falhou, pode ter sido a única falha, mas custou uma vida, a vida de uma criança pobre a quem restou do carnaval apenas a contemplação de um palco já sem atores. Fatalidade? Não! Desatenção de quem deveria estar zelando pela preservação dessa vida e não previu o trágico desfecho a que levariam o deslumbramento, o fascínio e a curiosidade infantil.