O Bruxo

Falar de Camões, depois de tê-lo negligenciado, por assim dizer, na estante, é ousadia rara a quem, de resto, faltam engenho e arte. Arrisco; transcrevo os camonianos. Esta década testemunha, já, muito debate que atenta tendências para transformações políticas e sociais. Situação semelhante à que ocorreu na Europa renascentista e, logo, capitalista, era de conquistas, descobertas, mas também progresso e avidez de lucro. Marcam a época a história de Portugal, a aventura da Índia, um momento de crise do Cristianismo com o Turco, mil e uma experiências de vida. Aí estão a Corte, personagens lusitanas e de ultra-mar com suas realidades, que passam à história em versos imortais. “Os vossos, mores coisas atentando, novos mundos ao mundo irão mostrando.” (Lusíadas, II, 45). 

Em suas Obras Completas de Luís de Camões (Livraria Sá da Costa – Editora, Lisboa 1947), Hernani Cidade louva no autor a erudição – no épico, lírico, drama. Nos Lusíadas, transcende o nacional, intercala “alguma coisa da infinita variedade da vida”, discorre sobre “a mísera e comovedora humanidade” no afã de poder. Poema de conhecimento histórico e de costumes, patriotismo, moral, religião, não poupa os ambiciosos sucessores dos heróis decantados: “Vê que aqueles que devem à pobreza// Amor divino e ao povo caridade, // Amam somente mandos e riquezas, // Simulando justiça e integridade. // (Canto IX, 28).

Para além de seu próprio mundo e da vida no desterro, Camões fala de Deus e o cristianismo, deuses mitológicos e o homem, as forças da natureza, a realidade, a carta geográfica a expandir-se, contradições e perplexidades daquele processo de transição – que agora parece querer repetir-se. Glória a D. Sebastião, a quem dedica o poema, eco da ambição de poder Real sobre vassalos de todas as terras, o Novo Reino. Na profecia de Adamastor, há inquietação (Canto I, estrofes 105,106): “No mar, tanto tormenta e tanto dano,// Tantas vezes a morte apercebida!// Na terra tanta guerra, tanto engano,// Tanta necessidade aborrecida!//

Camões lírico é quase infinito: nos sonetos, éclogas, canções, odes, elegias, mas também cartas, três Autos e redondilhas. Estas, de uma “elegante frivolidade na qual Camões é inimitável”, estampa Augusto Meyer. É o Bruxo, o feiticeiro, o mágico, que fascina e seduz com as formas com que usa o idioma. Camoniano exemplar, Meyer é magnífico na exegese dos versos. Rima, métrica, ritmos de timbre, tom, musicalidade, sentido, ressonância, enlevo. Rimas simples, mas ricas.

 “Ao Camões petrarquiano e consciente de seu requinte, ao Camões herdeiro da cultura clássica, ao Camões realista e cioso do valor da experiência, todos eles já estudados, convém acrescentar o Bruxo Camões, de uma extrema audácia mágica na simplicidade”. Aprecia a variedade de efeitos com palavras que sugerem, por exemplo, trevas e escuridão: “ua nuvem que os ares escurece//sobre nossas cabeças aparece”. Ou profundidade e som cavo: “No mais interno fundo das profundas// Cavernas altas, onde o mar se esconde,// Lá donde as ondas saem furibundas…” (Canto VI, 8). E, caso bem raro nos Lusíadas, o efeito extraordinário das rimas proparoxítonas: “Não acabava, quando ua figura// Se nos mostra no ar, robusta e válida…// O rosto carregado, a barba esquálida,// De disforme e grandíssima estatura… // Os olhos encovados e a postura // Medonha e má, e a cor terrena e pálida…// Cheios de terra e crespos os cabelos, // A boca negra, os dentes amarelos”.  (Canto V, 39). Literatura considerada inexcedível.

 Camões, diz Meyer, rejuvenesceu a antiga arte de glosa pela espontaneidade e simplicidade, fina ironia e mordaz fraseologia. E de novo o Bruxo mostra-se “elegante, palaciano, nas alturas do que possa haver de graça em poesia”.  “Nos livros doutos se trata, // que o grande Aquiles insano// deu a morte a Heitor troiano;// mas agora a fome mata // o nosso Heitor lusitano.// (Trovas, 110). Ainda sobre ‘o desconcerto do mundo’ as Trovas 116: “Os bons vi sempre passar// no mundo graves tormentos;// e, para mais me espantar, // os maus vi sempre nadar // em mar de contentamentos.// (Camões, o Bruxo e outros estudos’ Livraria São José, 1958). Literatura de linguagem jocosa. 

 No drama, Camões combina tendências clássicas e nacionais, e inclui ainda um aspecto cômico, moral, que o faz popular. Em sua alongada Vida e Obras de Luís de Camões (traduzida por Carolina Michaëlis de Vasconcelos), Wilhem Storck situa o lírico e o drama de Camões na literatura portuguesa e o épico na história das conquistas do século XVI, quando Portugal, diz, deixou-se enlear pelas glórias, feitos e riquezas, aderindo à ostentação e à cobiça. “Camões conheceu bem essa degeneração e a vituperou com palavras de amargura nos Lusíadas”. No entanto, não se absteve das loas ao rei D. Sebastião, a quem serviu e o compensou com pensão real. Afinal, é nessa epopeia que consuma a ideia do épico, vinda do século XV, e que só um século depois a concretizaria como uma era de transformação, abrindo-se ao mundo. Literatura de realidade e sentimento.

Camões, o Bruxo – único -, aos 500 anos encontra em Kazan alguns dos magos do século XXI, que nesta outra era se permitem alçar, com grandes sacudidas, reformas nos sistemas geopolítico, econômico, financeiro. A bem do progresso geral, do desenvolvimento, do fim da desigualdade afrontosa e vergonhosa. São palavras de presságio do presidente da China, Xi Jinping: “Durante esta transformação tectônica sem precedentes, jamais vista há séculos, a situação internacional vem experimentando mudanças sérias e revoluções”. Sem querer perder tal espetáculo, lá do espaço etéreo aonde subiu, Camões desce à Terra:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades; // muda-se o ser, muda-se a confiança; // todo o mundo é composto de mudança, // tomando sempre novas qualidades. //

Continuamente vemos novidades, // diferentes em tudo da esperança; //do mal ficam as mágoas na lembrança, // e do bem (se algum houve) as saudades. //

O tempo cobre o chão de verde manto, // que já coberto foi de neve fria, // e, enfim, converte em choro o doce canto. // E, afora este mudar-se cada dia, // outra mudança faz de mor espanto, // que não se muda mais como soía. //

(Soneto 92, em Rimas, Alvaro J. da Costa Pimpão, Por Ordem da Universidade, Lisboa 1953).