Creio que já se pode falar, sem erro, no “tarda mas não falha”. As mudanças no sistema monetário e financeiro ditado pelo Ocidente, e que vinga desde Bretton Woods 1944, afirmam-se com a penalização do dólar como moeda global única. A proposta de Keynes previa a criação de um banco internacional com uma nova moeda de reserva, bancor, em uso para transações comerciais. Os Estados Unidos tinham outra coisa em mente: o dólar, com lastro no ouro de Fort Knox. Logo, a posição única do dólar concederia aos Estados Unidos o que um ministro francês das Finanças chamou “privilégio exorbitante”.
Situando um período mais recente para um voo rasteiro sobre os fatos, destacamos as décadas 2010/2020. Flagrante o boomerang desencadeado pela política americana de sanções.
De dezembro 2014 a outubro 2017, deslancharam os acordos mútuos, em moedas nacionais, de uns dez ou mais países. Uso do dólar restringido, até proibido. Começa a reduzir-se sua parcela no volume de ações americanas. Desde novembro 2015, a Rússia incluiu o yuan na lista de moedas para suprir as reservas em ouro e câmbio externo. Um ano depois, permitiria a emissão de bônus, em moedas nacionais, dos países do Brics e da Organização para a Cooperação de Xangai (SCO, na sigla em inglês). Alguns bancos tornaram-se independentes: o Banco de Investimento Rússia-China, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD, banco do Brics), o Banco Irã-Rússia. Houve uma mexida também no crédito e transferências bancárias (com sistemas nacionais de crédito) e negócios ultramarinos (com o retorno de capital aos países de origem).
No jogo da democratização do sistema financeiro, os analistas observam um fato relevante: a regional SCO leva vantagem, graças a sistemas de pagamento independentes em alguns de seus países – Índia, Irã, China e Rússia. Desatrelar o sistema de pagamentos do sistema dólar leva tempo e causa danos. Bem-vinda seria a colaboração Brics-SCO, numa plataforma digital multilateral. Um projeto em foco.
Em junho 2024, o renminbi (nome oficial da moeda chinesa) tornou-se a quarta moeda mais usada em pagamentos globais. É percebida mais como instrumento de diversificação e de maior autonomia financeira, que como sucedânea do dólar. O Sul Global segue o consenso, parece também avesso ao domínio de uma moeda única, num sistema plural. Por ora, entra nas considerações criar-se uma moeda de reserva do Brics. No salve-se quem puder, internacionalizar moedas não tradicionais é preciso.
Não arriscar. Em edição dedicada ao tema desdolarização, a revista chinesa Wenhua Zongheng
[https://thetricontinental.org/wenhua-zonghen-2024-1-brics-desdollarization]
expõe a opinião e/ou análise dos pesquisadores Gao Bai, Yu Yongding e Ding Xifan e do economista brasileiro Paulo Nogueira Batista Jr. Gao Bai apresenta a interessante fórmula dos três ‘de’ (prefixo que, no inglês, significa o oposto de): de-coupling ou desacoplar, de-risking ou desarriscar, não arriscar, e de-dollarization ou desdolarização. O esforço do de-risking, no uso do dólar em transações comerciais, leva a de-coupling o comércio do sistema financeiro, também regido pelo dólar. Resulta que o dólar enfraquece seu status global e o sistema financeiro mergulha numa onda de de-dollarization, compatível com a coexistência de várias moedas principais: o reinminbi, o próprio dólar americano, o euro, uma futura moeda do Brics, outras que sejam, a seu tempo.
Ding Yifan e Paulo Nogueira Batista são pró moeda de reserva para o Brics – para começar. Desatrelar o dólar, o xis da questão. Até porque é o dólar a moeda de apreçar o petróleo. Ding Yifan e Gao Bai também referem-se ao problema da dívida doméstica americana: não para de crescer e não há como pagar. De US$26 trilhões sob Trump 2016 a US$34 trilhões sob Biden. Um legado a Trump 2024. Yu Yongdong atém-se à questão das reservas chinesas de câmbio externo (parte congelada) e à internacionalização do renminbi. Que, ao atingir um nível alto, pode tornar-se moeda de reserva para outros países – quem sabe para o Brics. Argumento: se não houvesse uma forte demanda por reservas em dólar, enquanto os Estados Unidos emitem dólares para maquilar a falta de poupança, de há muito o dólar teria entrado em colapso.
No debate da desdolarização, há muitos que apoiam o renminbi para suceder ao dólar, e aqui se incluem grandes exportadores do setor energético, com grandes superávits comerciais com a China. Mas é crença geral que, se isso ocorrer, vai demorar.
Comenta Paulo Nogueira Batista Jr.: “Como sublinhou Gao Bai em seu artigo, não é nada evidente que a China tenha os meios e esteja verdadeiramente interessada em substituir o dólar estadunidense pela sua própria moeda. Para uma economia que ainda não está totalmente madura em termos financeiros, o “privilégio exorbitante” pode muito bem tornar-se um “fardo exorbitante”.
A preocupação com lastro levou Rússia e China a aumentarem suas reservas de ouro.
Enquanto isso, crescia o comércio de petrodólar a petroyuan. Fins de 2024, o vice-diretor do Fundo Nacional de Segurança Energética (gás) da Rússia, Alexei Grivach, informava do “ainda não oficial mas tangível” confronto entre o G7 e o Brics sobre energia. Pesa a adesão de três países hidrocarbonetos do Ocidente asiático, que a seu ver mudou drasticamente a balança de poder no setor. Mesmo no formato original, o Brics já era um formidável conglomerado, ressalta. Detém agora cerca de 40% das reservas comprovadas de petróleo e mais de 50% das reservas de gás. Diferenças favoráveis ao Brics estendem-se à energia elétrica que, para Grivach, define melhor o deslocamento do poder econômico do G7 para o Brics. Fora outros tipos de energia renovável – inclusive a energia de baixo carbono.
Obviamente, o mercado reage. Postula reavaliar os pilares que suportam o “modelo” atual a fim de protegê-lo, mas aceita como fato consumado a fragmentação. Admite como irreversível esse processo, num contínuo aumento, a curto prazo. Admite que o renminbi despontou como a segunda moeda global. Admite que chegam a 15% as perdas das reservas globais em dólar. E admite a erosão de confiança nas instituições financeiras, em uso crescente como arma política desde o 11 de Setembro.
O “Compre que o Tio Sam garante” cede a “À venda” e “Em liquidação”. O dólar vai mergulhando. Mas caberia numa cesta de grandes moedas, se e quando oferecidas pelo novo sistema em arquitetura. O quão distante está o voo da “alternativa”? Siga o dinheiro, o Big business, os oligarcas. Qualquer que seja a ordem global, ou a desordem, haverá sempre uma indagação: o lucro ou as pessoas?