O livre-arbítrio

As leis naturais, que regulam os fenômenos físicos ou os fenômenos sociais, exigiram e exigem longa observação e estudo, para serem enunciadas, de vez que dependem de acurada disciplina do espírito, no entender o meio ambiente e as coisas. Há leis elementares evidentes e outras que surgiram depois de penosas e difíceis experiências. As leis elementares são respeitadas pelo homem sem dificuldade. Assim são as verdades por todos reconhecidas. O homem precisa de alimentação. É uma lei natural. Indiscutível, certa. Para estabelecer que um corpo mergulhado em um líquido sofre de baixo para cima um impulso igual ao peso do líquido deslocado, já a Archimedes foi necessário pôr em ação sua notável inteligência. O que dizer das complexas leis de mecânica celeste e da incipiente física nuclear?

Todavia, o homem que vem esquadrinhando a natureza, investigando fenômenos e procurando fixar as leis que os regem, mantem-se em ignorância primitiva na maior parte das leis que dizem respeito à sua própria felicidade, com o conhecimento de sua personalidade psíquica.

A consciência própria, objeto deste escrito, ainda para fixação da lei de responsabilidade, continua em discussão entre fatalistas e livre-arbitristas, a desafiar os limites da responsabilidade. O senso da responsabilidade é o poder de tomar livres resoluções. Nossas ações não são controladas ou solicitadas por impulsos exteriores, mas determinadas por nosso caráter e nossa própria vontade. Estamos assim estabelecendo uma lei de livre-arbítrio, que eleva o homem e o faz responsável.

O homem, feito de impulsos ou escravo de paixões, não é senhor de si, nem verdadeiramente livre. Vagueará ao sabor de seus apetites de momento, flutuará entre as opiniões de terceiros, carecerá de confiança em si mesmo, e lhe faltará, em suma, solidez e dignidade de caráter.

O homem verdadeiramente livre considerará os motivos da mais insignificante ação, e poderá tomar, livre de influências exteriores, a melhor deliberação, que será a condizente com sua consciência livre, porém sólida e digna, pela noção da própria responsabilidade.

A verdadeira significação de escolha e livre vontade reside justamente no autodeterminismo, muito diferente do determinismo fatalista do muçulmano, expresso no conciso maktub. Porque sou livre, escolho esta ou aquela solução, como a mais justa ou equilibrada, e sofro as consequências dela. Se faço má escolha, sofro e tenho remorsos, talvez a punição mais grave para um espírito superior.  Aliás, não é nosso o conceito, que num estado elevado de existência nenhum outro castigo é necessário.

O senso de responsabilidade cresce inevitavelmente com o conhecimento e possibilidades de ação, e se desenvolve proporcionalmente. Estamos formulando, talvez como reminiscência de leitura anterior, outra lei, que a ser verdadeira impõe aos governantes ou dirigentes de qualquer natureza, estrita responsabilidade, até aqui deixada ao acaso, ou exonerada sob pretexto de boas intenções, aquelas com que, diz o povo pitorescamente, estão calçados os infernos…

Estudiosos da natureza humana têm visto na luta entre a parte boa e a má, como que um conflito entre a carne e o espírito, consequência da dupla origem do homem. A animal, proveniente da evolução da espécie e a que recebemos como espírito, parcela divina ou da Inteligência Universal, oriunda de uma ordem superior que nos encaminha para a perfeição.

Nenhum homem com verdadeiro bom senso comete o mal, e o que o pratica o faz baseado em motivos que lhe pareceram justificáveis e oportunos, senão necessários. Praticará erro de inteligência e não de vontade. Estará sob a influência de contingência humana, que o progresso, a evolução, o estudo, a ciência, enfim todas as forças da inteligência procuram eliminar: o erro.

Não esqueçamos o lamento do apóstolo: “Não faço o bem que desejo, mas faço o mal que abomino”.

Publicado em 15 de janeiro de 1955.