‘O mundo precisa, nós temos’

País industrializado, a África do Sul identifica-se mais aos mercados emergentes que ao próprio continente. Índia e China são acolhida para estudantes e Dubai para as elites – e artistas – em busca de consumidores. País de tensões sociais e tolhido pelas desigualdades, é junto à Maioria Global que espera contar com melhores perspectivas de desenvolvimento. A 15ª cúpula dos BRICS+, em Johannesburg, outubro 2023, inscreve-se nessa perspectiva. A próxima, 22-24 outubro, traz uma boa notícia, que parte de St. Petersburg, o Fórum Econômico Internacional, em junho: a criação da moeda única Unit, ainda pendente dos trâmites finais nessa cúpula em Kazan, Rússia. [https://wp.unitfoundation.org]. O BRICS+ é um vislumbre de impulsão aos setores de mineração, comércio e taxas de câmbio desfavoráveis.

Segunda potência continental, a África do Sul, que só perde para a Nigéria e seu petróleo, prioriza a boa vizinhança e a promoção da paz. Mas ainda mal-amada; tem complexo de superioridade, queixam-se alguns países. Paga, assim, o preço da desconfiança e de um antiapartheid sem todas as cores do arco-íris. Sem grandeza, Cyril Ramaphosa celebrou em Pretória o Dia da Liberdade, o 29 de maio 1994 do despertar da esperança. Hoje ressentido com uma situação de pobreza disseminada, alto índice de desemprego (32% oficial, com 60% sem trabalho entre os jovens de 15 a 24 anos) e endividamento – o povo sul-africano talvez sequer se aperceba do repetido discurso para acirrar descrédito: corrupção. O país preza, na sua política interna, a complexa unidade continental, tantas são as etnias, e na política externa a sancionada – porém indefensável – solidariedade aos palestinos de apartheid semelhante, a ponto de levar à Corte Internacional de Justiça o caso de genocídio em Gaza. Faz da defesa da descolonização uma marca registrada.

Pingos nos is, o fim do apartheid foi um pacto com o liberalismo, porque a situação estava a ponto de explodir. Levou a eleições, Mandela tornou-se presidente, livrando-se, com outros mais, de 17 anos de prisão. Repete-se a situação. Os brancos (20% da população) continuam a dominar as terras e a economia. O CNA representa esse pacto, social e político, em dissonância. A população negra de novo radicaliza. A oposição que cresce nada mais é que uma ruptura na até então imbatível lealdade no próprio CNA: os partidos EFF, Combatentes da Liberdade Econômica, e Mk, do ex-presidente Zuma, um tanto radicalizado. Mais um empurrãozinho aproveitador da Direita, na Aliança Democrática, agora o segundo maior partido. A erosão de apoio ao CNA começa, digamos, em 2009. Greves de longo prazo, denúncias de corrupção, violência, desemprego crescendo. Acirrou-se a agitação em 2015, com protestos estudantis, em proporções inusitadas. Nas eleições de 2019, de 70% dos votos, o CNA passa a 58% e chega a 2024 com 40%. Estatais sob investigação (energia e transporte) e o irromper de outras questões de desafios contínuos, como a reforma agrária. O país também arca com elevada dívida pública, como de resto todo o continente, os cofres drenados pela pandemia, guerra na Ucrânia e adaptação paulatina à mudança climática, que acrescenta milhões de dólares ao desconforto social. Fora os muitos imigrantes nas áreas urbana e industrial, fugindo de países nesse continente de eternos conflitos.

O poder dos minerais. Dependente do comércio exterior, a África do Sul é sensível também aos conflitos globais. Minérios sobressaem nas exportações, mas também produtos agrícolas. Promissor o convite da Rússia aos países da Associação de Produtores de Diamantes Africanos (controlam 60% da produção mundial) para estreita colaboração no âmbito dos BRICS+, a fim de obter condições de comércio livre contra as sanções, que tendem a reduzir os ingressos das exportações. Minerais críticos constam de listas inumeráveis. Servem de guia para políticas nacionais dos comprometidos com a geração de energia de baixo carbono e tecnologias da indústria verde. Em fevereiro 2022, os Estados Unidos divulgaram sua lista de 50 commodities “minerais críticos”. A Índia selecionou 23 para o setor de manufaturas. Papers políticos emergiram dos governos da Austrália e Reino Unido. Este defende o paradigma industrial-militar nacional, ou seja, fornecimento relegando os grandes produtores “pobres”. São abordagens inadequadas às necessidades sul-africanas, que levantam a importante questão da concorrência leal por recursos e oportunidades, e acesso a todos os mercados.

Acirra-se a corrida desmedida pelos minerais verdes, ou críticos, ou estratégicos, na verdade tecnológicos, sucedâneos do petróleo. País dos BRICS+, a política do ganho-ganho corrobora o mote sul-africano “o mundo precisa, nós temos”. Na cúpula sobre os minerais críticos em Johannesburg, agosto 2023, o ministro dos Recursos Minerais e Energia, Gwede Mantashe, foi incisivo: “Nosso argumento, na África do Sul, é a de que o crítico em um mineral não depende de quem o usa. Importam suas implicações holísticas – tendências e necessidades globais. Importa desenvolver um mapa claro de como maximizar a exploração e monetização dos recursos para agregar valor às economias na fonte. Não pode haver futuro verde sem os minerais da África”.

Poucas e boas indagações emergem dos resultados eleitorais do país, com sua espantosa fragmentação partidária e acordo com a direita frontalmente oposta. A partir mesmo do Plano Nacional de Desenvolvimento e seus vínculos com a Agenda 2030 (nacional) e a Agenda 2063, ‘A África que Queremos’. O projeto de reforma agrária, de abordagens várias, questiona o arrendamento ou direitos de propriedade. Dados de 2023 registram: dos 77,58 milhões de hectares de terras aráveis em poder dos brancos em 1994, só 24,7% pertencem hoje aos negros ou ao Estado, que as arrenda a empresários. O Projeto de transição energética (zero carbono até 2050) parece em compasso de espera. É causa maior do desemprego e impacto na indústria. Nos assuntos exteriores, China e Rússia acentuam presença na África do Sul, inclusive no Conselho de Segurança da ONU. E há o BRICS+.  

Conhecidos os resultados eleitorais o presidente Ramaphosa sentenciou: “A elite política ouviu as vozes de nosso povo e deve respeitar seus desejos”. Continua no governo até 2029, graças a acordo com a Aliança Democrática, direita branca, e o conservador Partido da Liberdade Inkatha, de fora a dissidência do CNA. É uma força esgotada, dizem os analistas.