À força de prolongar-se, a democracia assemelha-se ao lento declínio da hegemonia ocidental – não sai de moda. Aos tropeços, aparam arestas, recorrem à diplomacia, promovem ou destituem governos, derrapam, afanam-se em soluções para problemas insolúveis. Nem sempre a democracia será uma política da lei e da ordem, mas da ordem no caos, que permite o “funcionamento”. Segundo Ciro Marcondes Filho, caos não é ausência de ordem, mas informação extremamente complexa, que permite relações flexíveis. Nos livros, porém, e para seus múltiplos autores, a democracia agoniza, não sobrevive: está em decadência, em declínio, em estado de urgência, à morte. São muitos os rótulos inexpressivos, mas Thomas Branthôme (Universidade Paris Cité) calca nos riscos: democracia iliberal e liberalismo antidemocrático. Indaga: crise na democracia ou pela democracia? O sistema ficou acanhado, reduzido apenas ao jogo eleitoral; há “eles”, que não somos “nós”. Eles demarcam o campo político, ensejando ressentimento popular de nós, não participantes. Então, é reescutar as mil bocas da democracia para chegar a um novo senso comum. Democracia lei, direitos, escolhas, mas também agitação, contestação, indignação, manifestação.
O que definirá este ano 2024, em que 4,2 bilhões de eleitores, em uns 60 países ou mais, vão às urnas? Os analistas, tão saturados quanto os eleitores, começam a avaliar as democracias com método simplificado. Assim fez o Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral [www.idea.int], com sede em Estocolmo, Suécia. A democracia, como fenômeno dinâmico, varia segundo países e contextos, ensejando o aperfeiçoamento de suas instituições e capacidade de enfrentar crises. E também de prover respostas. Retrocede ou avança? O quanto eleições importam? Desta vez, trata-se de confiança, ou falta de confiança, em governos e instituições, inundados por fatos de sabor ficção. Um ano inédito, com eleições de grandes implicações: Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, África do Sul, Índia, Irã, Parlamento Europeu, México. Na América Latina, dois países (Venezuela e Haiti) propõem-se uma “abertura democrática”. Os brasileiros invadem o espaço com eleições municipais, em que talvez desponte algum reflexo no embrionário programa de economia social.
Alinhamento. Em seu relatório mais recente, o Instituto avalia as democracias em quatro indicadores: representatividade (processo eleitoral), direitos, Estado de Direito (leis), participação da sociedade civil. Nesse cenário, elas se acham em estado fluido e desigual no mundo. Em 50% houve recuo, apesar de algum avanço quanto ao comparecimento às urnas. Também cresceram as mobilizações sociais, mesmo se reprimidas. Ainda há muita restrição à liberdade de imprensa e associações. Coube à Europa o galardão de melhor desempenho no quesito Estado de Direito. Com democracias consolidadas, marca presença com voto em alguns países e no Parlamento Europeu (720 membros de 27 países). Esta pincelada regional vê as Américas com pontuação boa em representatividade, mas baixa quanto aos direitos. Cresce a militarização como recurso à violência – mais a costumeira interferência dos Estados Unidos. Sete países vão mal, mas treze outros entram na lista dos 50 primeiros do mundo no quesito governo eleito, sendo o Brasil o 45º. Ano passado, só 48% da população, em toda a América Latina, demonstraram apoio à democracia.
Serão estas eleições de tomada ou mudança de posicionamento, como alternativa às incertezas, descrédito, fadiga? Já existe exemplo. Em 21 agosto 2023, o Parlamento Centro-Americano (El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, República Dominicana e Panamá) aderiu à tese de uma China, ao destituir Taiwan como observador permanente. Agora, só sete países da América Latina e Caribe reconhecem Taiwan. Contudo, ainda prevalece o “ficar como está”: reeleição ou candidato do governo. Como no México, onde o pêndulo inclina-se para a candidata oficial, uma das duas mulheres aspirantes ao cargo. No Uruguai, é possível uma volta às tendências, com a Frente Ampla (15 anos no governo, até perder para o presidente atual). Sobrepondo-se aos Estados Unidos, dentre as esferas externas de influência amplia-se a da China, mercê dos mercados de minerais estratégicos – uma troca. Sob o manto de uma “visão benévola”, a que não subverte a ordem política, cresce em presença na região, onde 21 países já se envolvem na Iniciativa Cinturão e Rota. Moscou limita-se a alguma forma de cooperação (Venezuela, Nicarágua) e o Irã a projetar imagem; distante o mundo muçulmano.
Um modelo. Os africanos parecem conviver com um sismo inescapável. Salva-se a África do Sul, modelo exemplar de democracia e instituições democráticas fortes, diante de crises e golpes repetidos e acenos para vias alternativas de desocidentalização. Três dentre tantos países em desgaste – Mali, Níger, Buskina Faso – vêm de deixar a Ecowas, Organização da África Ocidental. A bifurcação parece ser a Rússia, que volta seus mercados regionais para o continente (a lembrar o Foro Econômico de St. Petersburg, ano passado), e também a China, movendo para frente o Cinturão e Rota. Governos militares e civis, mesmo se eleitos – por voto ou manobra – continuam acorrentados a um imutável quadro de exploração, desastres climáticos, fome e preços altos. Extrapolamos para esta situação a teoria pórica (comunicacional, em sua origem) de Ciro Marcondes Filho: o homem abre-se caminhos pelos poros. Passagem para… Travessia por… Em um espaço caótico. É o que também acontece no Sul Global asfixiado, buscando via indeterminada, livre, uma concepção que os BRICS ampliam, e assim entrar na transição verde de abraço tecnológico. Quanto à Índia, são limitados seus interesses econômicos na América Latina, prefere continuar um aliado estratégico dos Estados Unidos na Ásia.
Dentre as cinco ou seis dezenas de países nas urnas (perdeu-se a conta exata), acontecem eleições legislativas no Irã, em plena turbulência regional, e também na Jordânia e Kuwait. Imutável a linha conservadora iraniana. Mesmo com manifestações pela modernização, considerada questão interna, há continuidade intrínseca na política, condizente com a revolução de 1979. Nada a ver com democracia à la Ocidente. O Islã é uma questão política, expressa o iaiatolá Khomeyni. Dirige-se à comunidade muçulmana, com uma mensagem universal, um chamado à unidade de todos os povos, uma mão estendida aos “irmãos” de qualquer país ou raça. Apesar das pazes importantes entre iranianos e sauditas, subsistem grupos armados pelo ódio e ressentimento.
Marca o mês de março o Diálogo do Prêmio Nobel, com debate do tema Fatos & Ficção: O futuro da democracia [nobelprize.org] e [rebecka.oxelstrom@nobelprize.org], dia 5, em Bruxelas. Ouvidos bem abertos à escuta de ruídos e rugidos.