Rio de Janeiro, 2023. A população, noutros tempos alegre, leve e solta, anda cabreira, temerosa, falando baixo pelos cantos, como acontecia nos anos de chumbo. Se as garras do terror daquela época já não ameaçam, ocupa esse espaço a disputa entre as milícias e o tráfico de drogas ilícitas, estonteando estudantes e trabalhadores, vitimando-os, mutilando-os, destroçando-lhes a segurança e a família e afetando-lhes a esperança. E as crianças? Estas morrem alcançadas por projéteis disparados por ninguém sabe ninguém viu.
Claro que este quadro não comporta a totalidade dos 6,8 milhões de habitantes. Estão fora dessa guerra civil os alienados, que não se dão conta do perigo que os cerca, e os moradores de bairros nobres, com segurança particular nos condomínios, frequentadores de festas particulares protegidas por guardas armados e de bares da elite, com filhos em colégios guarnecidos, protegidos do mundo à volta. São, porém, muito poucos os que desfrutam desses privilégios. A grande massa não dispõe desse conforto, em destaque os moradores em morros e favelas, estes os mais sacrificados.
Bairros inteiros, regiões até, estão à mercê de grupos armados com troca de tiros a qualquer hora do dia ou da noite, às vezes ininterrupta praticamente ao longo de semanas, onde sair de casa, pôr a cabeça na janela, espiar pela porta entreaberta é um risco que pode custar a vida; crianças já não podem brincar nem diante de casa porque correm o risco de ter o corpo trespassado por uma “bala perdida”. Mães em desespero! Isso é vida?
Que garantias oferecem os que governam o estado e a cidade? Nenhuma, apenas palavras vãs.
Nem todos que moram na favela são bandidos, mas bandidos se escondem na favela, e é do conhecimento das autoridades que eles sujeitam à força, com truculência, ameaças, covardia e armas, os moradores, obrigando-os a defendê-los e protegê-los quando eventualmente ocorre uma operação policial. É certo que há muito bandido fora das favelas, alguns vivendo nababescamente na Zona Sul e Barra da Tijuca, e até foragidos em mansões de Mangaratiba e Região dos Lagos. E nem estamos falando dos criminosos de colarinho branco.
O que fez a Polícia para evitar que a situação chegasse ao ponto que chegou? O que está fazendo para conter o avanço dos milicianos e dos traficantes e para devolver os espaços e a tranquilidade aos habitantes da cidade? Apenas entradas pontuais em favelas, com poucas prisões, poucas apreensões de armas, eliminando um ou outro que tenha oferecido resistência. A impressão que se tem é que essas ações carecem de planejamento, que a inteligência das forças policiais está acéfala. E no fim do dia, frente às câmaras da televisão, vem aquele discurso repetitivo, decoreba, seguido da informação de que a Polícia tudo tem feito para garantir a segurança da população.
A esta altura é preciso recorrer às falas atribuídas a um dos amigos mais fiéis de Jesus Cristo, Mateus, que reproduzia um dos ensinamentos de seu mestre: a árvore que não dá bons frutos deve ser cortada e lançada à fogueira. O que espera então a Polícia para acatar a sugestão?
Tudo bem! Tem feito o que julga possível, mas não tem alcançado êxito. A ineficiência pode ser consequência de vazamento de informações. Quem sabe? Importa o seguinte: a Polícia vai continuar nessa lenga-lenga, brincando de gato e rato, ou vai agir com sabedoria e levando em conta que a população merece respeito das autoridades e dos órgãos que as representam? Ou a Polícia assume seu papel e acaba com milicianos e traficantes, ou saia de cena e deixe que eles assumam o comando da insegurança da cidade. Afinal, falta pouco.
É bom lembrar que esses grupos se empanturraram de armamento pesado e abundante munição há bastante tempo, quer por estratégia muito bem calculada, quer por vista grossa a peso de polpudas propinas. É bom lembrar também que a cidade não produz armas, que as contrabandeadas de fora aqui chegam por três caminhos óbvios: terra, mar e ar. Palpita a pergunta: a quem cabe o patrulhamento dessas três vias? E dessa indagação primeira seguem-se algumas variantes cujas respostas não restabeleceriam a tranquilidade da sociedade, mas confortariam a consciência dos cidadãos por saberem por quem estão sendo ludibriados, traídos.
Paralelamente aos confrontos armados que ensurdecem e alucinam moradores das regiões conflagradas, os habitantes da cidade do Rio de Janeiro sofrem com os assaltos a mão armada ou ‘na mão grande’. Ladrões roubam automóveis e por vezes sequestram condutores e acompanhantes; escalam fachadas de prédios, entram em apartamentos pelas janelas para praticar saques e desaparecem aparentemente sem deixar rastro; apropriam-se de tudo que houver sido manufaturado com metal, até tampas de bueiros e portões de garagem; invadem shopping centers e investem contra joalherias; surrupiam sacolas de alimentos nas proximidades de supermercados; têm obsessão por telefones celulares e se apoderam de todos cujos portadores deem chance. Não contentes com todos esses ganhos, dominam com seus arrastões as praias, tidas antes como locais de lazer barato e sem discriminação.
Rio de Janeiro, cidade cantada em prosa e verso, recanto do mundo que o poeta apelidou de Cidade Maravilhosa, infelizmente já não é tão maravilhosa, mas um amontoado de guetos entremeado de nichos de alta renda, de vida a custo elevado, embora sem contrapartida pelo que seus habitantes são obrigados a contribuir para manter a onerosa estrutura governamental e seus penduricalhos, destacando-se aí as forças policiais, apesar da falta de segurança e de perspectivas de que a situação possa melhorar a curto ou médio prazo.