Em páginas datilografadas, cuidadosamente guardadas entre as folhas de uma velha agenda escondida pela poeira do tempo, encontrei A Sextilha da Razão. Um antigo e típico cordel nordestino, com estrofes de seis versos (como indica seu título), em redondilha maior (versos hectassílabos), de um estilo elegante, tratando de um tema incomum para os vates populares sertanejos: o “Racionalismo Científico e Cristão”.
Bati o olho e já imaginei que meu saudoso avô Wilson Pôrto, que era poeta e racionalista cristão, deveria ser o autor do cordel. Li cuidadosamente os versos, tomado de profundo respeito e, diria também, com um certo fascínio: por que uma obra tão original e instrutiva, de versos tão bonitos quanto vibrantes, enfim, tão rica de sensibilidade como essa não tivera, como tudo indicava, sido divulgada ou publicada até então?
Analisando o poema, percebe-se o desejo expresso pelo autor na própria obra de que eventual publicação fosse precedida de autorização do Racionalismo Cristão, por tratar dessa filosofia de vida e mencionar o seu fundador, Luiz de Mattos. Tal cuidado condizia com o imenso respeito e admiração que Wilson Pôrto tinha pela filosofia que abraçou. Tal fato tenha talvez contribuído para que não se tivesse dado a lume até hoje o mencionado poema, que chegou a ficar escondido por tantas décadas.
Conversei com algumas pessoas da família a respeito. A autoria da obra foi reconhecida pela minha irmã Andréa (que fora dona da agenda). Meu tio Ivan, ao ler o poema, escreveu-me estas palavras: “Do começo ao fim o texto lembra ele; é como se ouvíssemos ele falando sobre o assunto, contando os versos batendo com os dedos na mesa”.
A fim de poder atender à vontade de meu avô e dar publicidade ao poema, contatei a sede mundial do Racionalismo Cristão e recebi calorosa e gentil acolhida do ilustre presidente Gilberto Silva, informando que a obra seria publicada no jornal A Razão, liberando também a família para publicar a obra e me pedindo que escrevesse uma breve apresentação do trabalho e do seu autor. Aqui vai.
Quem foi. Wilson Pôrto nasceu no Município da Pedra, no Agreste de Pernambuco, em 31/07/1906, e faleceu em maio de 1995, em Recife (PE). “Homem versátil, foi funcionário público, dentista, advogado, jornalista e poeta. Quando jovem foi comunista convicto e por isso preso várias vezes. Muito inteligente e chefe de família após a morte dos pais”, como consta da obra genealógica Raízes (1997), escrita por sua sobrinha Icília Magalhães de Oliveira (que atuou durante décadas como médium na Filial Arcoverde do Racionalismo Cristão).
Wilson Pôrto chegou a presidir, nos seus primórdios, o Racionalismo Cristão em Arcoverde (fundado em 1933 por sua irmã, Isaura Magalhães de Oliveira), quando a cidade ainda se chamava Rio Branco. Assim relatou o então presidente do Racionalismo Cristão, Antonio Cottas, em discurso que enviou para ser lido na cerimônia cívico-espiritualista ocorrida em 2 de setembro de 1962, quando da inauguração da sede própria da Filial Arcoverde (conforme extraído do livro O Racionalismo Cristão em Marcha, 1962, editado pelo RC):
“Senhores! A 30 de março de 1934, dirigia-se o Sr. Wilson Magalhães de Siqueira Pôrto ao Centro Redentor, Casa Chefe do Racionalismo Cristão [..], comunicando-nos estar realizando sessões de limpeza psíquica com o firme propósito de trabalhar para conseguir a construção da sede própria. Escrevia mais o Sr. Wilson: ‘Aqui, como talvez o prezado amigo não saiba, o meio ambiente é dos piores, isto devido à ignorância dos praticantes do espiritismo. Assim sendo, só pela dor física e moral é que irão chegando ao Racionalismo Cristão, alguns muito a contragosto de parentes e amigos que se levantam contra nós, porque pretendem confundir-nos’
Sim, razão tinha o Sr. Wilson em assim se expressar, mas à medida que o povo se esclarecia e se inteirava da Verdade concluía que aquilo que por aí afora se praticava com rótulo de espiritismo era apenas ‘magia negra’ e jamais Espiritismo”.
Prole. Wilson Pôrto foi também o primeiro presidente do Esporte Clube de Arcoverde, em 1946. Casou-se a primeira vez com Helena Rodrigues Porto, e tiveram quatro filhos e nove netos. O segundo casamento foi com D. Maria Almira Ferraz Porto, tendo cinco filhos e 16 netos. Teve também três filhos com Iracema Alves de Souza, os quais lhe deram nove netos. Teve, assim, ao todo, 12 filhos e 34 netos, além de muitos bisnetos.
O jornalista e escritor William Pôrto, seu filho, assim escreveu em 1983, na crônica A casa do major:
“É difícil uma pessoa com mais ou menos quarenta anos, que tenha vivido em Arcoverde dos anos dourados, que não tenha arrancado ou obturado um dente, ou posto uma chapa, no gabinete do Major. Presenciei inúmeras vezes pessoas chegarem com serviços feitos pela metade, por dentistas formados, para que pai consertasse o estrago. Era um dente extraído pela metade, uma obturação mal feita que havia caído, uma chapa frouxa ou apertada e por aí seguia. O Major, com aquela paciência que Deus lhe deu (paciência, talento e força na munheca), consertava e ajeitava tudo. Só tinha um defeito: não sabia cobrar. O cliente dava o que queria. E quem não queria e nem podia pagar ficava com o nome no livro do fiado, que era mais grosso do que a Bíblia. […] A casa do Major, além de um lar, foi uma escola para todos nós. Nela aprendemos que a honestidade vale a pena; que a bondade e a solidariedade compensam, que o amor existe e que, por mais escuras que sejam as noites, é preciso cantar. Se havia dificuldades, havia também fraternidade, lirismo, poesia e o sonho que alimenta o Homem desde o início de sua existência: o sonho da Liberdade”.
Infelizmente, não podemos precisar quando Wilson Pôrto escreveu A Sextilha da Razão. A obra, por sua singeleza e didatismo, explica-se por si mesma. Importa notar, contudo, que provavelmente foi escrita durante a época da consolidação do Racionalismo Cristão, quando este era presidido por Antonio Cottas, em que era necessário combater com mais ênfase certas ideias fantasiosas que aprisionam os espíritos a misticismos e fanatismos, as quais se encontravam mais arraigadas em nossa sociedade. Assim, eventuais passagens mais incisivas devem ser creditadas a esse momento histórico, ao peculiar estilo do autor, franco e direto, ao seu amor pela verdade e também à própria característica da poesia popular nordestina.
Veja o poema no link: A sextilha da razão – A Razão (arazao.org)