Quebrando o gelo

Cada um lida com o aquecimento global como pode ou deve. Para o Ártico, a mudança do clima parece uma bênção. Esquenta mais do que qualquer outra parte do planeta: 3,1 graus nos meses mais frios do ano, de outubro a maio. Temperaturas mais quentes da água retardam o crescimento do gelo no outono/inverno e o gelo derrete mais rápido na primavera. Também cresce, acelerado, o degelo do subsolo perenemente congelado (permafrost). Um quinto dessa camada está vulnerável, segundo a revista Nature. Daí a sanha de apoderação do Ártico pelos países com parcela no tesouro, de exploração facilitada pelo degelo. Recursos naturais, biodiversidade, novas rotas de navegação transpolar e a grande promessa do imensurável volume de comércio são desafios de longo prazo.

Quem tem jurisdição no Polo Norte, mares e massas de terra que definem o Ártico, um território de 200 milhões de quilômetros quadrados? As inclusas zonas econômicas exclusivas (EEZs na sigla em inglês) dividem-se entre os oito países árticos: Canadá, Estados Unidos, Rússia, Noruega, Dinamarca/Groenlândia, Islândia, Suécia e Finlândia. Nelas, cada país tem direito a explorar e extrair recursos marinhos, inclusive hidrocarbonetos sob o leito do mar, e energia de produção hídrica e eólica. A superfície do oceano são águas internacionais. Há conflitos quanto ao que é meu e o que é seu, que se vão agravando à medida que o gelo derrete.

Em um de seus inúmeros debates sobre questões e relações internacionais, o Valdai Club atesta o fim do consenso sobre o Ártico (os Sete da Otan e a Rússia), mas também a importância de seu desenvolvimento e da política externa russa. O país detém 52% de território ártico e uma vastidão de recursos ainda impenetrados. O relacionamento com os Estados Unidos é tido como “longo confronto”, ora em fase temporária (proposta reaproximação unilateral). Apenas mais um confronto, dentre tantos. “Mais importante, ocorre sob condições que se desenvolvem apenas uma vez em poucos séculos – um período caracterizado pela redistribuição estrutural do poder global e potencial de recursos”, esclarece Andrey Sushenkov, um dos diretores do Valdai. Evoca a estratégia apoiada na escola de pensamento e pesquisa, primeira metade do século XX, que permitiu aos Estados Unidos ganharem o almejado, na segunda metade do mesmo século. Mas essa estratégia envelheceu. No caso da Ucrânia, observa, Washington insistiu na fórmula de poder e superioridade, de destruição, em vez de uma simples tomada de posição para evitar a guerra. “Agora, o confronto militar passa a ser uma fase conveniente para a Rússia – e os Estados Unidos são forçados a buscar uma saída”. Conclui que não está na Ucrânia a solução do problema. Há outros pontos de tensão: Ásia (sobretudo o ocidente asiático), África e, eventualmente, o Hemisfério ocidental. “O longo confronto terá pausas”.            

Um modelo inédito. O consenso evolui para uma experimental linha de “heterarquia”, distribuição de autoridade entre múltiplos atores, substituindo o sistema hierárquico desajustado. O Ártico é um bem comum, global. Mereceria um modelo interdependente, dinâmico, para lidar com as peculiaridades da região – diversidade, diferenciação, novas descobertas. Um sistema multinível, multinodal, países árticos e não-árticos, organizações internacionais, multinacionais, não-governamentais, agindo justapostas, entrelaçadas. Atualizar um ciclo defasado. Artigo recente no European Journal of Futures Research explica como a mudança climática inerente ao Ártico facilita a exploração dos recursos. Favorece tanto mais a indústria do gás natural, em voga e demanda, quanto a navegação comercial, mas exacerba os riscos ambientais.

Assim, o que antes era consenso evolui para tratar da segurança, soberania, bem-estar das populações residentes. A região militariza-se. A pesquisa científica aprofunda-se, a China na liderança, na contramão dos Estados Unidos. O Ártico, tão especial, exige infraestrutura inestimável. É ainda a Rússia que apequena os demais, a começar por seus 45 quebra-gelo de propulsão nuclear. Vem expandindo a exploração das reservas de gás natural, nesse bolo de várias cerejas. Sua política externa para o Ártico, Projeto 2035, assegura poderio na Rota do Mar do Norte – para a qual os Estados Unidos clamam status de águas internacionais. A Rota corre ao longo da costa russa ártica, onde o degelo aparece primeiro. Artéria de transporte desde a zona econômica exclusiva russsa, elevaria a 270 milhões de toneladas o volume de carga entre Ásia e Europa até os anos 2030 – a projeção. Apenas 19 dias de viagem, de 40% a 60% mais rápido do que pela via do canal de Suez.

O Ártico ajusta-se como mão e luva à expansão da Rota Polar da Seda (lançada pela China em 2018), uma extensão da Iniciativa Cinturão e Rota, em parceria com a Rússia. Cria-se uma órbita no sul da Ásia, pari passu a exploração de recursos de energia e mineração (mais pesca e turismo) com a Noruega. Para a China, o Ártico significa três continentes e dois oceanos. Em 2013, o governo chinês ganhou o status de observador no Conselho Ártico, foro de debate entre governos. Em 2018, lançou documento oficial sobre a política para o Ártico, atenta à biodiversidade e pesquisa científica. Cuida disso o Instituto de Pesquisa Polar em Xangai. Quanto aos Estados Unidos, os apetites estão em dissonância com a própria capacidade. Carece atualizar desde as políticas até a frota de quebra-gelos (o aço). Só a arenga está em dia. Vem lá do Trump.1, escancara-se no Trump.2. Pensa em estabelecer um corredor, econômico e militar, norte-sul. O controle do hemisfério, no grito e garra. 

Afinal, o cofre ártico esconde riquezas desconhecidas. Segundo o US Geological Survey, cerca de 22% das reservas de petróleo e gás natural são um prêmio para Rússia e Noruega. Dentre os minerais: carvão, diamantes, urânio, fosfato, níquel e elementos do grupo platina. Nas regiões árticas da Rússia e Escandinávia, há os cobiçados minerais terras raras e cobalto. A península de Yamal, noroeste da Sibéria, pode tornar-se o epicentro do comércio de gás natural liquefeito. De novo, assoma a Rússia, ora para ali voltada, dando as costas para a Europa.

Talvez a guerra na Ucrânia tenha arremessado o processo em curso de “outras regras, outra ordem, outras lideranças”. Aos poucos, vai dizendo a que veio, inclusive o sofrimento evitável.