Na transição entre o Clássico e o Romântico, Beethoven é a figura dominante na Música. Tudo já foi dito sobre ele, tudo continua inexplicado, senão inexplicável – assim pretendem muitos. Mas, sentencia o biógrafo Bernard Fauconnier, ainda não se disse tudo, “nem sobre sua vida, às vezes enigmática, nem sobre sua obra, visionária, profética e, no entanto, tão próxima de nós”. O pensamento musical de Beethoven transformou-se numa visão do mundo dos anos 1800: social (as Letras e Artes na sociedade europeia), política (ideias revolucionárias, nacionalistas, democráticas), filosófica (Kant e a lei do “homem só é homem quando é livre”), literária (Goethe, um ídolo), psicológica (a vida em si, o homem e seu destino). A mensagem é de humanidade, insinua o volumoso registro de sua vida, inclusive os cadernos de esboço (composições) e de conversações (o ‘outro’ deve escrever, para ‘ele’ responder).
Ludwig van Beethoven nasceu em 16 ou 17 de dezembro 1770, em Bonn, mas Viena, para onde foi em 1787 conhecer Mozart (e também Haydn), seria seu lar e apoteose. ‘Van’ não era título de nobreza, apenas indicação de descendência que remonta ao século XV. Nessa sociedade de fazendeiros e artesãos, a família (pai, mãe, mais seis irmãos e um sobrinho) cultiva a Música: canto e piano; também violino e viola. Privilegiado em Viena pela nobreza que o acolheu como igual por suas composições, Beethoven pôde franquear a Corte aos que o sucederam.
Despedida. Vinte e cinco anos antes da morte, em 1827, no famoso Testamento de Heilgenstadt (10 de outubro 1802), de magro legado aos irmãos, Beethoven pensava e rejeitava a ideia de morrer: “(…) Despeço-me de vocês com tristeza. Sim, devo abandonar a esperança que eu tinha, pelo menos de ser curado quase completamente. Como as folhas do outono que secam e caem, ela também secou para mim; como cheguei aqui, devo partir.(…) É impossível para mim dizer às pessoas ‘Falem mais alto, gritem, pois sou surdo! (…) Fui quase tragado pelo desespero, um pouco mais e teria dado um fim à vida – apenas minha arte impediu-me de fazê-lo (…)”. E dizer-se que em Heiligenstadt surgiram os primeiros acordes da ‘Heroica’!
Mas foi Sïmrock, editor musical em Bonn, quem recebeu as primeiras impressões de Viena: “(…) Aqui faz muito calor, os vienenses estão inquietos, em breve não poderão mais encontrar gelo, pois no inverno fez tão pouco frio que o gelo é raro. Estão prendendo várias personalidades aqui; dizem que vai haver uma revolução – mas eu acho que, enquanto o austríaco tiver cerveja escura e salsichas, ele não se revoltará…”
Amigos e amigas. Autodidata, cerca-se de livre pensadores. Seu professor Erloge Schneider, aberto defensor da Revolução Francesa, morre guilhotinado em 1794. No verão de 1796, Beethoven adoece. Enfrenta: “Coragem! Apesar de ter as fraquezas do corpo, meu gênio deve triunfar. Estou com 25 anos, é preciso que este ano revele o homem completo. Nada mais resta fazer!”. O médico Franz-Gerhard Wegeler e a Família Breuning agora somam-se, amigos para sempre, aos três nobres Mecenas que permitiram a Beethoven desfrutar certa independência financeira: o arquiduque Rudolph e os príncipes Josef Max Lobkowitz e Ferdinand Kinsky. Cartas incontáveis afloram os entreveros, sobretudo as dirigidas a Wegeler.
Em 29 de junho1800, após consulta a um cirurgião do Exército, escreveria ao caro amigo: “(…) Ele não me receitou remédio algum, exceto pílulas digestivas, há quatro dias, e uma loção para os ouvidos. Com certeza, sinto-me melhor e mais forte, mas meus ouvidos zunem e zumbem perpetuamente, dia e noite. Posso dizer, de verdade, que minha vida é muito miserável: há quase dois anos evito a sociedade, porque julgo impossível dizer às pessoas, ‘estou surdo!’. Em qualquer outra profissão, pareceria tolerável, mas na minha tal condição é verdadeiramente assustadora. Além disso, o que diriam meus inimigos? – e não são poucos (…)”
Das cartas de Beethoven às mulheres, emerge um conceito elevado do mundo feminino. Pensou seriamente em casar-se (1810), com Therese Malfatti, filha de um latifundiário. Mas parece que sua imortal bem-amada é outra, a condessa Giulietta Guicciardi, a quem envia ardentes cartas em julho de 1800: “Bom dia!.Mesmo antes de me levantar, os pensamentos me invadem, minha imortal bem-amada! – às vezes cheios de alegria, e ainda assim tristes, esperando se o Destino nos ouvirá. Devo viver totalmente com você ou sem você. Seu amor me torna o mais feliz e, contudo, o mais infeliz dos homens… Sempre seu. Sempre minha. Sempre um do outro.”
Cobrança. Em 12 de fevereiro 1813, depois da morte do príncipe Ferdinand Kinsky, que deixa pendente dívida de salário, em extensa carta à princesa Kinsky (assinada ‘seu obediente servo’), Beethoven insiste: “Imploro a Vossa Alteza o favor de cuidar da dívida de meu salário, devido desde 1 de setembro 1811, calculado em moeda vienense, de acordo com o contrato […] e, in interim, se pode ser adiada a questão de este salário ser pago em moeda vienense até que o assunto se resolva, quando então será de novo levado ao curador e meus direitos reconhecidos como justos, por seu consentimento e autoridade…”
Com seus demônios. Bons anos da Viena cultural, antes da guerra. Música alemã, italiana, francesa. Leitura e mais leitura, Goethe no topo e o veemente desejo de encontrá-lo. Seria Bettina von Arnim Brentano, escritora e musicista, baluarte das liberdades políticas, com profundo conhecimento de ambos, que facilitaria o encontro. Sua carta a Goethe ficou famosa; ela transcreve frases do próprio Beethoven, que tanto almeja conhecê-lo. “(…) Fale de mim a Goethe! Diga-lhe que deve ouvir minhas sinfonias! Ele concordará comigo que a música é a única e imaterial entrada num mundo mais alto do saber, que envolve o homem sem que este possa percebê-lo. Para que o espírito possa concebê-la em sua essência, é preciso que ele tenha o sentimento do ritmo; graças à música, temos o pressentimento, a inspiração das coisas divinas (…)”.
Encontro. A carta chega às mãos de Goethe em 4 de maio de 1811. E Beethoven recebe, enfim, o demorado sim. Mas só em 9 de julho de 1812, ambos em Teplice, Boêmia, os dois encontram-se. Consta do anedotário que, passeando nos jardins públicos, Goethe e Beethoven cruzam com a Família Real. Dela parte cumprimento amistoso a ambos. Um Goethe refinado desmesura-se nas reverências. Beethoven, um tanto desguelhado, mal levanta o chapéu em simples aceno. E, logo, reprova Goethe pelo exagero. Não houve segundo encontro nem mais resposta às cartas de Beethoven. Apenas continuam a se ler e ouvir.
Anos de meditação até 1815. Nascido católico, Beethoven agora é um cristão inconformista. Na mesa de trabalho, inscrições do templo da deusa Neit em Saís, que copiara à mão: “Sou tudo o que é, que foi e que será; nenhum mortal levantou o véu que me cobre”. Lê textos de filósofos indianos, em particular o Bhagavad-Gita: a energia a serviço das tarefas que a vida impõe. A ambição de criar domina: “Coisas muito diferentes se esboçam no meu espírito”.
Art longa, vita brevis. Dois séculos e meio convidam a encontrar o Ano Novo ao som de Beethoven. Força espiritual comparável a de Goethe – eis a imagem do biógrafo Walter Riezler. Mas é com o erudito ensaísta brasileiro Franklin de Oliveira que finalizamos: “Reconheceu Beethoven que a arte tem uma função transcendental a desempenhar – a de nos restituir ao reino da Graça… Ele de nós não se despede nunca”.