“Na verdade, minha família não me transmitiu nenhuma verdade, nenhuma cultura, a não ser o amor pela música, pela canção popular do lado paterno, pelo bel canto do lado materno. Imigrados para a França, meus pais não vinham de uma nação, mas de uma cidade situada no centro do império otomano, Salônica, em sua maioria povoada por sefaraditas que falavam o velho espanhol e também o francês, sem por isso possuírem uma cidadania turca. Enraizei-me na cultura e na cidadania francesas, depois, com o tempo, descobri e alimentei minhas múltiplas raízes mediterrâneas, ibéricas, italianas, balcânicas.”
Preferi, às minhas, as palavras do Preâmbulo de Meus Filósofos (Sulina, 2013), para apresentar Edgar Morin em seus 100 anos, em 8 de julho. Bem vividos. De filósofos, assimilou: “O que posso saber?”, “Que sei eu?”, “Quem sou eu?”, “O que devo fazer?”, “O que posso esperar?”. Autodidata em busca de suas verdades, foi sensibilizado desde cedo pelas complexidades humanas e históricas. Implicam, diz, “integrar simultaneamente as múltiplas dimensões de uma mesma realidade, a saber, a realidade humana, as incontornáveis contradições e as inelimináveis incertezas”. E também pela violência, ambivalência, metamorfoses, esperança e desesperança, o planeta e seu futuro, religião, consciência e humanidade, educação e ensino, ciência e tecnologia, cinema, amor e poesia. Viver, enfim. “Sou um ser humano”. Esses 100 anos estão em mais de 60 livros, suas memórias recém-editadas, e cujo pensamento ele mesmo o figurou ao vivo em La Grande Librairie, como convidado excepcional (22 de junho). Mais não fora para tanta diversidade tão curta a vida…
De há muito, abre-se o Brasil a ele, sobretudo pelo zelo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Também em junho, os amigos de sempre da PUCRS, e eu destaco o discípulo Juremir Machado da Silva, realizaram as Jornadas Edgar Morin. Mas o marco está em 1º de setembro de 2000, quando ali recebeu o título de Doutor Honoris Causa, seguido da publicação do livro As duas globalizações (Sulina, 2002). No primeiro texto, expõe essa dualidade dos séculos XIX e XX, de dominados e dominadores e, ao final, a novidade das manifestações da cidadania planetária. “É muito difícil de entender o que se passa… Não se pode fazer a previsão do futuro em função do presente…” Quanto ao segundo texto, sobre entrevista no rádio e televisão, é uma verdadeira aula, e eu o usei em classe. Porque “a entrevista pode ter um efeito psicoafetivo que vai além da própria informação”. Dirigir a palavra – a quem quer que seja, repercutida e transmitida a quantos e quantos seres humanos –, acaba por tornar-se “um princípio democrático literal e que se estende além da zona, hoje bem estreita, da política…”
Condenado em processo (posteriormente anulado) com mais dois autores, pelo artigo Israel-Palestina: o câncer (Le Monde, 4-6-2002) e outros mais, que reuniu sob o título O nó górdio judeu-israelense-palestino, publica em 2006 Le monde moderne et la question juive (Éditions du Seuil). Nesse ensaio de 260 páginas – “não é um tratado até à exaustão” –, aflora um dos princípios que marcam a obra: “A interdependência fatal do antijudaísmo e do judaísmo, do anti-islamismo e do islamismo agrava o círculo vicioso e começa a tomar a forma de uma guerra de religião que seria, ao mesmo tempo, guerra de civilização. Não mais apenas a fragmentação, é o ciclone em formação de um conflito que se quer irreparável e irremediável, que impede toda consciência de destino comum e de identidade comum. Esse círculo vicioso não será quebrado senão pela consciência de nossa humanidade comum”. Ao termo do ensaio, evoca “…a tragédia provocada pelo nazismo, de onde nasceu o Estado de Israel, e onde a noção de judeu assume nova significação. Por desgraça, a implantação de Israel em terra islâmica criou uma nova tragédia de amplitude planetária”.
Reencontramos o princípio do “planetário” em La violence du monde (co-autoria com Jean Baudrillard, Institut du Monde Arabe, 2003): “Nosso destino comum nos é ditado pela era planetária e, sobretudo, pelas ameaças mortais. Temos, assim, os ingredientes para uma cidadania terrestre, mas ainda não a consciência. Quando queremos reformar a humanidade, pensamos numa via: a da moral. Ora, o discurso da moral jamais modificou os comportamentos humanos, da mesma forma que a educação ou as grandes religiões universalistas. As mortes causadas pelas religiões de amor são consideráveis: se houvesse menos amor nessas religiões, haveria talvez menos ódio pelos que se desviaram, pelos heréticos, pelos infiéis…” Morin, já então, considerava “a existência de processos de metamorfoses no gênero humano. Metamorfoses, por exemplo, “no campo da biologia, ecologia, na relação tecnologia/ser humano e da época planetária”. Leva em conta a situação com as duas globalizações: a dominação tecnológica e econômica do Ocidente e a “globalização minoritária” das nações dominadoras.
Fenômenos esses do final do século XX, é em O espírito do tempo que, no prefácio do volume Neurose, constata: “Este livro, escrito em 1960/1, apareceu em 1962. Nada teria que suprimir, e muito que acrescentar… Efetivamente, muitas das características que assinalei neste livro ainda persistem hoje. Mas o “espírito do tempo” já é outro”. E no segundo volume, Necrose, esclarece: “O novo espírito do tempo faz explodir a cultura de massas…” Seria uma crise do sistema, com suas incertezas, instabilidade, antagonismos, desvios, busca de soluções novas.
Tudo tão presente! O acompanhar lúcido da história – com engajamento. Um laivo de esperança na desesperança. “Queres saber minha história? / Não na tenho na memória… / Não tem fim, não teve fundo: É a lenda da Humanidade. É a própria história do Mundo!…” (Raul de Leoni, Luz Mediterrânea.