Neste século XXI, com o fim das mil e uma guerras sem fim arquitetadas pelos Estados Unidos, seja para dominar (coação), seja para favorecer interesses econômicos e estratégicos, o regional vem assumindo a dinâmica e a (i)lógica e (in)oportunidade dos comportamentos. O abandono à própria sorte talvez seja o significado da retirada militar do Afeganistão, um conflito de escolha de 20 anos, na sequência da guerra de dez anos com a então União Soviética. Cofres drenados, cemitérios cheios, os norte-americanos não conseguiram incutir a ocidentalização à sua imagem e semelhança.
Autoridade no estudo do islamismo, o autor Fawaz A. Gerges (ISIS, uma história, 2016) explica em minúcias as condições que alimentam seu radicalismo: décadas de ditadura, pobreza, sectarismo crescente, exacerbados pela intervenção estrangeira. É cético quanto a uma solução simples ou rápida; ao fogo das paixões sectárias somam-se os erros do Ocidente na Síria, Afeganistão, Iraque, Golfo Pérsico, Irã (de forma indireta), e outros. Na herança do Estado Islâmico, a mensagem clara de destruição do sistema político existente. Pouco importa o tempo, que o islamismo radical não é imediatista. Até pelo próprio planejar dos atentados, aos moldes das bonecas russas, em etapas sabiamente pensadas: kamikazes, coordenadores a distância, refúgios, determinismo.
Despreparo. Em cogitação há dez anos, o fim da guerra mostra, em consenso, o Talibã despreparado para governar. O país é um mosaico de facções, grupos étnicos e linguísticos, com 2,5 milhões de refugiados no exterior. Suas fronteiras modernas datam de fins do século XIX, no contexto das rivalidades entre o império britânico e a Rússia czarista. O Afeganistão moderno tornou-se fiador das lutas sobre ideologia política e influência comercial. Já no século XX, o Talibã, movimento de austeros estudantes religiosos, é fruto de revolta contra os partidos governantes. Estabeleceu um regime autocrático (1996-2001), que logo cedeu à influência dos islamitas liderados pelo exilado saudita Osama bin Laden, e caiu em dezembro 2001.
Importância. Atrelam cobiça ao destino do Afeganistão sua localização – apertado no sul da Ásia Central, ao longo de rotas comerciais (o ópio que o diga) ligando o Sul e Leste asiáticos à Europa e Oriente Médio –, mais recursos naturais importantes, sobretudo depósitos de gás com grandes reservas, minerais e a preciosa pedra lápis lazuli. Irã, Rússia e países da Ásia Central dispõem-se a evitar que se torne abrigo e exportador de terroristas. Já a China volta-se aos recursos naturais e investe em infraestrutura de estradas e dutos. O país, nem assim tão de repente – em 2007 –, entrou no cenário geopolítico ao se tornar o oitavo membro da Associação para a Cooperação Regional do Sul da Ásia. Os talibãs pretendem recriar a teocracia ou Emirado islâmico.
Para a Rússia, o eurasianismo surgiu como alternativa ao comunismo, com o colapso da União Soviética, em 1991. Integra-se na dinâmica de poder do Leste asiático; a fixação na Ucrânia atende ao desejo de ancorar a Rússia na Europa.
Avanço chinês. Ao contrário da Rússia, a China seguiu o exemplo da Coreia do Sul e Japão e encampou o capitalismo de mercado. Como grande potência da Eurásia, consolida as fronteiras terrestres e arroja-se ao exterior. Quer assegurar petróleo, metais e minerais estratégicos para sustentar o padrão de vida em ascensão dos chineses. Pouco importa o governante com quem lida. Assim, mira em cheio os depósitos nunca dantes explorados do Afeganistão, país considerado, assim como o Paquistão, caminho seguro para seus dutos. Já há empresas chinesas cuidando em abrir estradas. Outro foco: o Sudeste asiático e, avançando, Malásia, Cingapura, Indonésia, em que pese a crescente islamização (e a expulsão de imigrantes chineses).
O autor Robert D.Kaplan indaga que tipo de potência hegemônica regional será a China, com tantas zonas naturais de influência e expansão. E turbulência no Leste asiático, como Taiwan, de futuro crucial quanto à estratégia marítima na Ásia. Os interesses econômicos da China valem-se tanto dos adversários dos Estados Unidos quanto dos aliados. Com o Irã, na linha de frente dos “inimigos”, a China tem acordo recente, válido por 25 anos, de cooperação econômica, política e de segurança. Antecipando fatia do mercado petrolífero iraniano, já criou uma rota direta, por mar, até o porto de Bandar Abbas, no Estreito de Hormuz. Arábia Saudita, Egito e até Israel (cooperação em indústrias de alta tecnologia) são os candidatos à política de boa vizinhança.
Atingir o equilíbrio de poder (este, segundo tese do geógrafo britânico Halford Mackinder, o objetivo da geopolítica) implica, na Eurásia, considerações sobre a corrida armamentista em curso. É o mundo sequente à retirada das tropas americanas do Iraque e Afeganistão. Um cinturão ininterrupto de países, de Israel à Coreia do Norte, que inclui Síria, Irã, Paquistão, Índia e China, e acumula arsenais nucleares ou químicos e desenvolve mísseis balísticos.
Tecnologias disruptivas. “Um equilíbrio de terror multipolar; a morte a distância”, define o cientista político Paul Bracken. Muito além das novidades armamentistas americanas, os asiáticos desenvolvem suas próprias “tecnologias disruptivas”, como chama, envolvendo vírus de computador e armas nucleares e biológicas. Xis da questão no século XXI é como o nacionalismo se associará a essas tecnologias, já de domínio da China, Coreia do Norte, Índia e Paquistão.
As mil e uma guerras sem fim mudaram de dono e armamento e, embora persistente a globalização, tendem a se deslocar para seus entornos. Um sem-número de autores não se cansa de evocar a derrota do império americano desde o Vietnã através do Sudeste asiático ao Golfo Pérsico, tal qual os impérios britânico e francês. É como repetir: não adianta forçar a natureza, o islamismo é a essência da região.