A amplidão universal do amor, clara desde já pela simples observação da realidade humana que nos envolve, é sublinhada por uma dúvida: há limites na forma de amar? É preciso transportar esse questionamento, inicialmente genérico, para a realidade da vida, a fim de que possamos compreender melhor essa reflexão.
Uma vez ultrapassados os condicionamentos simplistas que orbitam os conteúdos meramente materiais, verifica-se que esse tema se encadeia de maneira estrita à espiritualidade, precisamente no que ela tem de mais belo e profundo.
O amor tem necessariamente as suas expressões características. Por vezes, compreende-se o amor como um impulso para a satisfação pessoal, ou um simples recurso para atender a determinados padrões egoístas presentes na personalidade humana. Mas esse pensamento é deveras limitado: amor genuíno é entrega que traz consigo alegria, embora muitas vezes acompanhada da experiência da dor.
Excluir a concepção espiritualista do campo das relações intersubjetivas não libera as pessoas para a vivência de um amor sem limites, mas as escraviza na esfera das paixões. Suprimir o entendimento de que o amor tem origem e finalidade superiores não fortalece uma atitude saudável e elevada, mas retira o fundamento da vida e desorganiza, por conseguinte, a sociedade. Em outras palavras, a pessoa que desconsidera o aspecto transcendente do amor e as responsabilidades que implica seu cultivo desvincula-se de suas raízes, acabando por sentir-se insegura, sem chão. É preciso acentuar que todo esforço para romper com as espessas amarras materializadas que limitam a expressão plena do amor não vale, de nenhum modo, por si mesmo, pois se assim fosse reduzir-se-ia a uma vã aspiração. Na realidade, seu valor encontra-se na possibilidade de contemplar uma realidade integral em que o espírito se depara com sua própria essência.
Esclarecida a dimensão superior do amor e tendo presente seu horizonte espiritual, é necessário formular a pergunta de modo a contemplar um viés mais prático: de que maneira estamos abertos para a espiritualidade e interiormente dispostos a dialogar sobre a amplitude do amor? Abordaremos ao longo desta reflexão cinco níveis de resposta.
O conceito de amor tem tido múltiplos desdobramentos no âmbito do debate filosófico desde a Antiguidade, dada sua fecundidade teórica e sua força ideológica. Entretanto é preciso considerar, que surgem, na modernidade, diversas tendências comportamentais que não raro se dissimulam sob a aparência de amor.
Poderiam a miséria e a violência atingir um sem-número de nossos semelhantes se tivéssemos mais aguçada em nós a noção de amor? Estamos certos de que não, e por isso trabalhamos no sentido de expandir essa noção. Poderão nos perguntar: mas o que é que tudo isso tem a ver com o tema “limites na forma de amar”? A respeito disso respondemos o seguinte: o aspecto mais importante para a apreciação de qualquer questionamento é que ele seja analisado filosoficamente, isto é, que busquemos suas causas primeiras e não nos detenhamos apenas em seus efeitos. Por outro lado, temos ciência de que o saber filosófico, quando experimenta a inserção da espiritualidade, torna-se o mais importante instrumento de conhecimento de que o ser humano pode lançar mão neste planeta – daí o motivo de buscarmos uma interpretação filosófico-espiritualista dos limites na forma de amar.
As relações entre as pessoas distinguem-se claramente segundo o contexto social, político e cultural em que estão inseridas. A análise das estruturas de relacionamento é essencial para a compreensão da vida em comunidade. Os conteúdos espiritualistas do Racionalismo Cristão não estabelecem padrões comportamentais inflexíveis. Todavia, sua mensagem moral, alicerçada em preceitos cristãos, exerce influência considerável na vida daqueles que se inspiram na retidão e no amor ao próximo. Entre os motivos disso, reside o fato de que os autênticos conteúdos espiritualistas não são prejudicados por interesses mesquinhos de pessoas ou grupos sociais. A contribuição da espiritualidade em prol da dignidade deve imperar nos relacionamentos. Consiste sobretudo em articular os fundamentos ético-morais que irão nortear a ação humana, com o propósito de fazer que cada um recorra aos princípios gravados em sua consciência de modo a não violar os limites que, sem dúvida, devem existir nas formas de amar.
O ato de amar também implica afabilidade, isto é, uma conduta terna e delicada. Significa que quem ama não age grosseiramente, não atua de forma rude e inconveniente. Seus comportamentos e expressões são agradáveis, jamais ásperos e duros. Tal pessoa não se sente confortável em fazer seu semelhante sofrer, muito pelo contrário: canaliza suas energias de tal forma que a amabilidade não lhe seja um estilo de vida, mas uma obrigação moral.
A atitude de ternura constrói relacionamentos saudáveis, vínculos positivos, fortes laços afetivos, beneficiando, por conseguinte, toda a sociedade. É na ternura que a união conjugal, por exemplo, encontra estabilidade e consolidação reais. Estamos certos de que o amor ultrapassa qualquer forma de contrato, mas estamos igualmente convictos de que a sociedade deve estruturar-se na união dos cônjuges, que se amando e respeitando mutuamente, formarão – não sem desafios, não sem percalços, não sem problemas – a célula mater da sociedade, que é, sem dúvida, o monumento da família.
O fluir da realidade, com o dinamismo característico do momento histórico que vivenciamos, exige reflexão constante. Embora o próprio entendimento acerca do amor esteja direta e indiretamente relacionado com as configurações características da contemporaneidade, nota-se que na perspectiva espiritualista o amor maduro é sublime e, mais do que isso, subordina-se necessariamente à renúncia. Trata-se, antes de mais nada, de uma visão lúcida da realidade, de forma alguma uma visão exageradamente romântica ou muito menos fundamentalista. Afinal, a expressão máxima do amor, na estreita visão humana, só é perceptível quando sustentada pela renúncia. Senão vejamos: quando determinado cidadão que, já tendo superado diversas fases de aprendizado, submete-se voluntariamente a retornar a uma posição há muito solucionada para transmitir amorosamente os conhecimentos adquiridos em experiências passadas, fá-lo apoiado em que sentimento? Sem dúvida, no da renúncia, uma vez que o amor não é um sentimento, e sim uma atitude.
Percebam que o amor transcende o conceito de justiça tal como entendido pela maior parte da humanidade; ele ultrapassa a lógica determinista transbordando gratuitamente as comportas do formalismo, sem esperar nenhum retorno. Temos essa realidade demonstrada historicamente pelas mães, que se realizam na transmissão de seu afeto e amor, procurando mais amar do que ser amadas. Entretanto, devemos ressaltar que mesmo nas mais belas e magnânimas demonstrações de amor é preciso haver limites. Vejam, devemos amar nossos semelhantes, sejam eles nossos pais, cônjuges, filhos ou amigos, até o limite de nossas possibilidades. O que quer isso dizer? Que antes de nos predispormos a um genuíno encontro com o próximo, devemos amar-nos verdadeiramente. Para amar os outros, há um condicionamento, um limite a ser respeitado: é preciso amar primeiro a si mesmo. Ao estarmos em contato com nós mesmos não sobrecarregamos as pessoas que amamos com demasiadas expectativas.
Se estamos propondo uma alusão mais acentuada ao amor maternal, perdoem-nos, mas é porque colocamos aqui um pouco de nossa experiência pessoal. As afirmações que fizemos no parágrafo anterior situam o amor maternal como uma realidade fundadora e absoluta, que não sugere nenhuma reciprocidade por parte do ser amado, mas que tem como desígnio exclusivo a expressão autêntica do benquerer.
Dentro dessa perspectiva, poder-se-ia até mesmo discernir que quando se ama um semelhante como a si mesmo, ama-se, por extensão, o mundo a nossa volta; e para tanto evoca-se o amor que se recebe no lar por aqueles que nos acolheram e encaminharam, destacando-se mais uma vez o papel da mãe.
Embora não seja errado imaginar o amor sem limites e barreiras, sua expressão deve obedecer a certos critérios, até porque estabelecer limites também é uma forma de amar. Os parâmetros que condicionam as possibilidades de amor devem existir não para limitar sua expressão genuína, mas para protegê-lo de manipulações que distorçam seu sentido mais elevado. O amor, por tudo que já expomos, não deve ser confundido com formas de amar: estas são manifestações humanas, portanto, limitadas e imperfeitas, e é por essa razão que afirmamos a necessidade de equilíbrio e domínio nas manifestações de amor.
A conclusão a que chegamos não se encontra exatamente nos moldes de uma resposta inexorável ao enunciado proposto, pois ela está distribuída ao longo de todo o texto. Queremos deixar nítido que a dimensão espiritual é um elemento-chave no estabelecimento dos limites nas expressões de amor. Pela dignidade e seriedade de que se reveste o tema tratado, não seria adequado deixar de asseverar a inexistência de quadros míticos e fantasiosos que projetam a experiência amorosa no campo da fantasia. O amor, em todas as suas manifestações, deve ser fonte de estímulo para o crescimento individual e coletivo dos seres humanos, e não para devaneios e elucubrações doentias. Não existe relação afetiva perfeita, como a mídia, em grande parte das vezes destituída de critérios morais, costuma propor-nos. Os relacionamentos familiares estão marcados por crises as mais variadas, que implicam em aprendizado e não raro intensificam o fluxo afetivo, depois de superadas.
Desenvolver o hábito de dar verdadeira importância ao diálogo constitui um mecanismo fundamental para viver, exteriorizar e amadurecer o amor, mas que exige um longo e perseverante aprendizado. No que diz respeito à vida a dois, o modo de formular questões, o momento propício, o tom de voz, o tipo de abordagem são fatores determinantes para a eficácia da comunicação. “Lutar pelo amor é bom, mas alcançá-lo sem luta é melhor”, escreveu Shakespeare. Devemos admitir que, para que o diálogo seja profícuo, é importante que se tenha algo a comunicar, e isso requer um conteúdo interior que se obtém por meio de uma vivência fundamentada em princípios racionalistas cristãos que enobrecem e dignificam todas as manifestações humanas.
Por último, queremos reafirmar a importância de se cultivar o amor espiritual, que não discrimina, que não faz juízo de valor e que tudo supera admiravelmente. É o amor espiritual que nos permite enxergar o próximo como uma extensão de nós mesmos, e não como um mero adversário. Profundamente diferente do amor possessivo, denotando praticamente sua viva antítese, o amor espiritual não conhece nem o sentimento angustiante da perda, nem a desgastante pretensão de domínio. Se o primeiro está frequentemente envolto em conflitos, com os quais se detém, o outro se mostra profundamente libertador e eficaz em nosso caminho de relações uns para com os outros. Cultivemos o amor cada vez mais intensamente, para o nosso próprio benefício e para o benefício daqueles com quem convivemos.
Todos nós, cada qual seguindo a sua própria vocação – em casa, no exercício profissional, na expressão da sua cidadania, na busca de seus direitos e no cumprimento dos deveres -, todos devemos partilhar a atitude de benquerer, que em última análise, é a razão de ser da nossa existência.
Muito Obrigado!