Nem lá, nem cá. Então, o quê?
O que antes eram conceitos, princípios, preceitos, definidos e aceitos pelos adeptos, ora apresentam-se mascarados ou mesclados. Esta a paisagem política europeia, em ano de duas importantes eleições, em abril (França) e setembro (Alemanha). Os antagonismos e o antissistema estarão, então, expressos. Tal como, antes, em outros países: Grécia (contra governos extremistas de centro), Áustria (voto favorecendo a extrema direita), Espanha (socialismo cedendo a um conservador), Itália (protesto contra o berluconismo), Grã-Bretanha (novo partido, baluarte em defesa “dos que estão por baixo”), Holanda (oposição ao sistema), Irlanda (à esquerda, com o Sinn Féin), Dinamarca (popularismo).
A polarização, variando de país a país, tem como denominador comum apenas as questões da austeridade e refugiados. Parece marcar a década. Não ao acaso, mas efeito, ainda, da crise financeira de 2008 e das políticas neoliberais. Efervescência que flexiona e faz ceder a fidelidade partidária, sem delimitar campos opostos. Grã-Bretanha, França e Dinamarca acusam os resultados ‘antissistema’ mais promissores, mas de risco populista, tão alardeado pela mídia, ainda muito relativo. “A lógica, em qualquer lugar, é a mesma: o sistema é perverso, mas, afrontando-o, nos expomos a represálias”. Vinga, ainda, o bom senso do historiador Perry Anderson.
Assim, que projeto apresentar? “Em 2012, o ‘voto útil’ levou os adversários do neoliberalismo a escolher o sr. Hollande logo no primeiro turno, a fim de garantir a derrota do sr. Nicolas Sarkozy. Resultado conhecido: as grandes orientações do presidente vencido foram confirmadas pelos que se fizeram eleger, e a Frente Nacional tornou-se o primeiro partido da França”, lembra Serge Halimi (Diplo, novembro 2016). Na Alemanha democrata-cristã de Merkel, firme na ideia de consolidação da União Europeia, os socialistas ganham ascendência, e cresce a ainda incipiente Alternativa para a Alemanha, partido de extrema direita.
Abril 2017, França. Três candidatos predominam, ante os demais quatro, sem chance. Economista e autor, Bruno Amable lembra que, há 35 anos, os programas dos grandes partidos de governo não correspondem às esperanças econômicas das classes populares, que representam mais da metade do eleitorado.
Emmanuel Macron, ex-ministro da Economia no atual governo Hollande, e François Fillon, primeiro-ministro do ex-presidente Sarkozy, tentam afirmar-se pelo viés de uma postura rebelada com o sistema, para escapar ao descrédito geral. Marine Le Pen e sua Frente Nacional (extrema direita) preconizam remédios draconianos para os “flagelos” da moeda única europeia e os embates da imigração, mas sem explicitá-los.
Ao lançar, há precisamente um ano, seu movimento ‘Avante!’ (En Marche!), Macron mobilizou todos os contatos – financeiros, acadêmicos, administrativos -, acumulados ao longo de uma carreira bem sucedida e ao abrigo dos grandes sustos e surtos corruptíveis da modernidade. “O homem se apresenta como novo (nem Direita, nem Esquerda), sem passado e sem liames. Encarna, com seus círculos, a herança acumulada da nobreza do Estado, da habilidade e das altas finanças: o núcleo do ‘sistema’, em suma”. Constatação dos sociólogos François Denord e Paul Lagneau Ymonet, em livro recente. Em Macron, Merkel tem um aliado na questão da integração europeia. Ele também é favorável às privatizações e liberalização do mercado de trabalho.
Por sua vez, François Fillon é apresentado como um testa-de-ferro dos altos escalões do funcionalismo público, ancorado na burguesia católica, bancos e indústrias securitária e de comunicação. Sua aspiração estaria em executar um programa radicalmente neoliberal, “muito além do que qualquer outro partido direitista jamais propôs”, ressalta o economista e autor Bruno Amable. Grandes empresas têm papel chave em sua campanha. O ‘Penelopegate’, processo penal contra a mulher e os filhos, por empregos fictícios, de salários estratosféricos, pouco impediu instilar as ideias do candidato e seu programa, nos círculos favoráveis. Com a bênção de vínculos prestigiados com a imprensa, a começar por uma antiga assessora do presidente D’Estaing, de órgãos oficiais e governos estrangeiros. Anne Méaux dirige, hoje, ‘Image Sept’, que qualifica como “a primeira agência de comunicação independente da França”.
Marine Le Pen, na direção da Frente Nacional desde janeiro 2011, acentua, a partir de então, o mesmo reposicionamento doutrinal antissistema. Pretende reconquistar o povo, pregando o fim da moeda única, o protecionismo na política agrícola e o rearmamento cultural vis-à-vis o islamismo. Ganha pontos entre os jovens da periferia, que privilegiam a abstenção e, cada vez mais, o voto da extrema direita. Justiça e imprensa são os alvos preferidos de Le Pen, nesta campanha – ambos em desagrado popular. A justiça, porque funciona mal, a mídia, a soldo do poder. Postura que permite chegar mais perto do eleitorado. Primeira nas intenções de voto para o primeiro turno, a dois meses das eleições, passou a segundo lugar, depois de Macron; Fillon ora mais pontos, ora menos.
Se, um dia, o capitalismo do pós-guerra orientou a vontade de mudança no rumo do consumo, e a noção de bem comum popularizou-se entre a Esquerda, chega-se ao cerne da campanha francesa como uma imagem atual da Europa: nem Esquerda, nem Direita. E nem Centro. A atual situação geopolítica, incerta, somada à ascensão de um novo governo nos Estados Unidos, mais incerto (porquanto imprevisível), tende o pêndulo para o velho e sempre presente enfrentamento: privilegiados, beneficiários do modelo econômico e social, e os que a ele se sujeitam.
Clecy Ribeiro
(A autora é jornalista, professora das Faculdades Integradas Hélio Alonso, RJ)