Era uma vez
Era assim que começava
Eu era menino hoje recordo
As histórias que vovô contava…
G.R.E.S. Em cima da hora, 1973
Verdades ou não, fatos ou folclore, não sei. Lembro-me de que, quando menino, ouvia os mais velhos acusarem, indignados, alguns governantes de então de usarem mentiras como meio de se perpetuarem desfrutando as delícias do poder. Já naquele tempo a argumentação oficial era formada de promessas: prometiam baixar o custo de vida, levar água às torneiras em toda parte da cidade, morros inclusive, criar vagas nas escolas públicas para todas as crianças, na verdade suprir todas as necessidades da população carente, e a maior de todas, bandeira dos mandachuvas que se sucediam: proporcionar os meios para a aquisição da casa própria.
Hoje sinto que aquelas acusações são atuais, é como se nossos avós estivessem prevendo que o covarde regime de promessas não cumpridas chegaria aos seus netos com o risco de vazar ainda por muitas gerações. Nas conversas de vizinhos nos fins de tarde, rolavam muitas histórias, algumas incríveis, outras reais, como a da família que, premida pela sanha arrecadatória da autoridade e a indústria das multas que abarrota os cofres do governo e das concessionárias, acreditou, desiludiu-se e voltou às origens.
Assim contou a vovó: era uma vez… um homem pobre, educado, cristão, honesto. Não era honesto porque era pobre, mas provavelmente era pobre porque era honesto. É o que se vê por aí. A história tem já alguns anos, talvez não seja única do gênero. Pode ter duplicatas pelo país afora. Casado, era daqueles que beijavam a esposa ao sair para o trabalho e ao regressar à casa. Não adiantaria espremê-lo ou virá-lo ao avesso porque não se encontraria um senão em seu caráter, em sua conduta. Cidadão respeitável, perfeito.
Pois bem, essa pessoa morava com a mulher e três filhos num arremedo de residência, mas somente assim seu salário dava para manter a mesa em condições razoáveis. O abrigo tinha cobertura de telhas de amianto que o morador anterior havia conseguido, não se sabe como. É melhor não procurar saber. A casa ficava a meio morro, numa favela. Hoje é feio ou proibido falar favela, é elegante falar comunidade. Mas continua sendo favela, nome que identificou o Morro da Providência, no Centro da cidade do Rio de Janeiro, e que veio das paragens por onde Antonio Conselheiro transitava esclarecendo o povo contra a exploradora classe dominante, situação que resultou no extermínio do líder religioso e seus seguidores no que passou à história como Guerra de Canudos. E a quem interessar possa: favela não é pejorativo e dizer que alguém mora na favela não é destratá-lo, diminuí-lo, ofendê-lo.
Nosso personagem, nascido no interior do estado, tinha nove irmãos, todos criados na roça, no pequeno eito em que os pais cultivavam grãos e tinham alguma criação. Não era muita terra, mas sua região se valorizou e o sítio, alcançado pela especulação imobiliária, chegou a valer um bom dinheiro. Falecida a mãe, pouco tempo depois o velho se foi. Ficou a terra ambicionada por bancos e construtoras. O inventário foi a toque de caixa, embora àquela época já os herdeiros fossem mais de 20. Couberam ao nosso herói uns cascalhos, mas suficientes para ele dar entrada na compra de um lote em subúrbio distante e iniciar a obra. Aproveitou as férias no emprego e trabalhou de sol a sol até levar a família para a casa nova. Esse foi o começo do fim.
Pois é assim que funciona
No dia seguinte, a família não continha a alegria, era o utópico sonho da casa própria a qualquer custo: um cômodo de três por três, um banheirinho sem revestimento, sem ducha e sem chuveiro. Não fazia diferença porque também não tinha água. Um puxadinho servia de cozinha, ainda sem pia. Em seguida a primeira decepção e a primeira multa. Um fiscal da Prefeitura bateu à porta e intimou nosso alegre homem a comparecer à repartição para se explicar por haver construído uma casa sem licença. Ao menos o fiscal disse que o quartinho era uma casa. Era o que ele precisava ouvir, para empanturrar seu ego, mas não queria ter visto impresso na cobrança o valor da multa que a Prefeitura lhe aplicou, para ele praticamente impagável. Ponderou e conseguiu alongamento do prazo de vencimento.
Voltou para casa aliviado e encontrou à porta um estranho que se apresentou como vizinho e o convenceu a aceitar os serviço de um terceiro, capaz de botar luz em sua casa em dois dias. Seria um serviço barato a ser pago quando sobrasse um dinheirinho. O eletricista lhe apresentou um despachante que faria a ligação da água no mesmo dia e depois a concessionária a validaria. A este nosso homem teve que dar uma gorjeta. À noite, a família reunida, seu chefe enalteceu a solidariedade dos vizinhos. Parecia até o companheirismo observado na favela.
Dois dias depois, terminado o período legal de descanso, nosso herói voltou à oficina onde desenvolvia sua profissão. Exultante, contou aos companheiros o salto de qualidade de vida. Se tivesse noção do idioma inglês teria dito que tinha dado um up. Os amigos o parabenizaram, alguns tinham sido seus vizinhos na favela e também sonhavam sair de lá.
Já estava quase no dia de pagar a multa da prefeitura e eis que o pobre, que pensou ter melhorado de vida, recebeu mais duas pedradas: multa e ameaça de prisão por haver feito gato na luz e na água. Suplicou, pediu clemência, mas não foi atendido. Explicou que seus filhos ficariam sem alimentação, mas de nada adiantou. Um dos algozes, identificado por crachá, disse-lhe que o problema não era das concessionárias, mas dele. Simples assim.
Não entendeu o que estava acontecendo. Era confuso para um homem que veio da roça e se pendurou na favela, onde os moradores tinham água e luz de graça. Hoje, em algumas dessas comodidades, têm também grátis internet e sinal de TV a cabo. Curiosamente as concessionárias de energia elétrica cobram dos usuários que pagam em dia suas contas de consumo o rombo que favelados e camelôs dão em suas receitas.
Ele quase chorou ao comentar com a mulher. A energia elétrica foi cortada e, a seu pedido, religada dias depois, de forma segura e legal. Naquele mês, somente três noites a única lâmpada da casa foi acesa. Àquela altura já os quebradores de galho haviam desaparecido.
No dia previsto chegou a conta acusando o custo da ligação. Quase simultaneamente chegou a de fornecimento de água. Semelhante ritual, semelhante cobrança. A duras penas saiu de mais essas duas cacetadas. Havia, porém, muita munição a ameaçá-lo, acuá-lo e, por fim, expulsá-lo do paraíso que sonhara e, com muito sacrifício, conquistara. Temendo o tiro de misericórdia, voltou à favela e acomodou-se. Penou, mas aprumou-se.
Certo dia foi localizado pelos Correios e recebeu do carteiro um maço de correspondências, boletos de cobrança de contas de água e de energia elétrica de seu quartinho vazio já cercado pelo mato. Eram contas por consumo mínimo e comunicados de novos cortes das ligações. O casal se surpreendeu: como consumo mínimo se a família há meses fora praticamente expulsa de lá pelas contingências?
Mas é assim que funciona.
Autoridades mentiam e continuam mentindo. E apesar desse exemplo alardeiam que querem melhorar a vida do pobre e proporcionar-lhe a chance de ter seu cantinho próprio. Na verdade não lhe dão sequer a chance de trabalhar porque não promovem nem estimulam a criação de empregos; não lhe permitem erguer seu quarto e banheiro, porque impostos e taxas comem o dinheiro dos tijolos, do cimento, da alimentação e, eventualmente, de uma ou outra peça de vestuário; depois vêm as multas; por fim as famigeradas taxas mínimas, mesmo quando a pequena habitação está fechada, sem uso.
Quem vive fora das favelas enfrenta as cotas mínimas também do consumo de gás, além dos combos com aparelhos de televisão desligados, de não dispor de computador nem de telefone celular.
Vovó sabia das coisas. (JBA)